14º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Capítulo II: Pornografia poética

Tarde. Bagas comestíveis. O fruto suculento e negro. Indeiscente necessita do toque delicado dos dentes para expelir o caldo fresco e doce. Mordiscar os seios de Carol… Não tão distante, o medo de a prima tratar do mesmo modo a glande. Na boca de criança sensualidade é princípio sem contaminações, sabor puro, sem ruídos externos. Fruto vazio de gravidez é casca no chão; tapete negro escorregadio. Prenhe, atapeta o tronco. Clarabóias negras. Ao adulto, sensual será o parágrafo com sabor de enquadramento Aleksandr Sokúrov. Atmosfera de raízes aquáticas. Escorregadias. Mas palavras diurnas são cascas ressequidas, sem caldo. Necessárias as noturnas. Paridas em pouca luz e no desvario. Desnudas. Sem as roupagens do hábito. Sem hálito. Eu sentado na mureta. E ao mesmo tempo aqui, no escritório. O dedo no pó que se acumula. Distração necessária à (des)memória. Estranhezas resenhadas sobre o móvel. Vento, redemoinho, movimento. Muito distante… A névoa arrasta nuvens. Escurece. Surgem do fundo os primeiros raios. De alguma dobra imagens que pensei soterradas. Vamos, entre! A mãe saindo pela porta da cozinha, moça, o avental onde esfrega as mãos, o olhar na tempestade próxima, você ao meu lado desafiando a natureza, debaixo da árvore, comendo jabuticaba, mas sou eu quem responde, um Já vou! assim no singular, ninguém imagina esse duplo que fica bravo quando decido pelos dois, mas eu também deslumbrado com a natureza irada, mas puxando-o na direção da varanda, não gosto de contrariá-la, é a única em casa a nos acudir, e você resistindo até a luz mais forte riscar o céu e cair do outro lado da cerca desmascarando a fragilidade de sua valentia, você em disparada correria na direção da casa, caímos molhados no assoalho frio, a orelha ardendo nos dedos da mãe, carregados até o quarto, ela sem dizer nada, nem precisava, o ruído de travamento da chave, ficamos de castigo no quarto, reclusos, com o som graúdo da água desabando no telhado, tardes crepusculares que me carregam de estranhezas, rachaduras e fissuras que me calam, mas você me tortura com suas propostas de fuga, coloca-me diante da janela, a natureza anoitecendo antes da hora, meu queixo no parapeito, de quando o vidro baço?, poesia de Fernando Pessoa, algo a ver com a morte da irmã, o dedo abrindo um vão no obstáculo, tarde enlutada, estou vendo vocês ainda garotos, a mãe na cozinha lavando louça, nas vazantes da culpa, não sabe castigar, está atenta aos ruídos que poderiam escapulir pelo vão da porta e que flagrasse algum som que denotasse arrependimento, mas o que ouve são os vazios da mudez, então retira o avental, enxuga as mãos nele, joga-o sobre a pia e atira-se no corredor.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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