Entrevista a Sérgio Nazar David

Sérgio Nazar David é Doutor em Teoria da Literatura (UFRJ, 2001), tendo efectuado um pós-
doutoramento (Coimbra, 2006) sob a orientação da Professora Ofélia Paiva Monteiro. É poeta,

professor de Literatura Portuguesa (UERJ) e integra, desde 2007, a directoria da Associação

Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. É membro da Equipa Garrett, do Centro

de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Publicou Onze Moedas de Chumbo

(poesia, RJ, 7Letras, 2001), Freud e a Religião (ensaio, Jorge Zahar, 2003), A Primeira Pedra

(RJ, poesia, 7Letras, 2006), O Século de Silvestre da Silva – Vol. I – Estudos sobre Garrett, A.

P. Lopes de Mendonça, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis (ensaio, Lisboa, Editora Prefácio,

2007) e O Século de Silvestre da Silva – Vol. II – Estudos Queirosianos (ensaio, RJ, 7Letras,

2007). Organizou a edição crítica de Cartas de Amor à Viscondessa da Luz (Edições Quasi,

2007) e de Correspondência Familiar (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012) de Almeida

Garrett. Colaborou e/ou tem colaborado em várias publicações: jornais, periódicos e cadernos

literários. Trabalha, neste momento, no volume Correspondência a Rodrigo da Fonseca

Magalhães (Imprensa Nacional – Casa da Moeda), de Garrett, a ser publicado em 2014.

 

MJC – Mais uma vez de volta a Almeida Garrett, Professor Sérgio Nazar David. O

que o atrai tanto neste autor?

 

SND – Hoje o que mais me atrai em Garrett é o estilo único, o grande escritor que

é. Em tudo que pega imprime a sua marca. Na poesia, na narrativa de ficção, como

orador político, como grande missivista, que também foi, sempre se descortina o

mestre da língua portuguesa em sua plasticidade moderna e inovadora, isto é, escreve

sem cabotinismo, e nunca sem elegância e graça. Também me apraz confirmar e

demonstrar, com bases documentais, a coerência (muito mais do que as contradições,

que a crítica literária tem, ao longo dos anos, feito por destacar) da trajetória do

intelectual, do escritor, do homem público que foi Garrett. Tudo mudou muito desde

os tempos de estudante de Leis em Coimbra (1816-1821) até a Regeneração (1851),

e ele foi mudando junto, comprendendo o processo dinâmico e complexo do devir

histórico português. Quem sabe os tremendos desafios que se interpunham àqueles

que queriam levar ao chão o Portugal velho para erguer um país mais democrático não

pode achar que quem muda (como Garrett mudou tantas vezes) é um vendido, um

dândi frívolo, ou um mundano qualquer. Isto Garrett nunca foi. Garrett nunca deixou

de escrever de forma absolutamente interessada em fazer algo – realmente algo eficaz

e não palavras ao vento – por Portugal.

MJC – O que me parece mais paradoxal é que o interesse pela organização da

correspondência de Garrett venha de um professor brasileiro. Como explica esse

facto?

 

SND – A organização da correspondência de Garrett envolve muitos problemas: a

transcrição dos documentos (quase nunca Garrett tem uma letra fácil); a ordenação

das cartas (a datação é quase sempre parcial); os vários assuntos que são tratados

(que não podem seguir sem anotação) e o sentido geral que tal documentação tem

para os estudos garrettianos. Desde o início, eu e a Professora Ofélia (coordenadora

geral da coleção Obras de Almeida Garrett, que vai no quarto volume, pela IN-CM)

temos tido o cuidado de dar organicidade a cada volume da correspondência. Não

queremos que se imprima um amontoado de cartas. As Cartas de Amor à Viscondessa

da Luz são 22. Lidas ao lado das Flores sem Fruto (1845), de Folhas Caídas (1853) e

de Viagens na Minha Terra (1843-1845-1846) ganham outra cor e feição: foi o que

procurei fazer. Já agora a Correspondência Familiar traz 105 cartas (48 inéditas).

Acrescente-se a estas dificuldades o fato de eu estar longe das fontes manuscritas

que são a matéria-prima do meu trabalho. Minha vida tem sido, desde 2004, entrar

de férias no Brasil e ir trabalhar em Portugal. Não acho que me ajuda ser brasileiro;

também não me atrapalha. O que me ajuda mesmo é ser um “devoto” de Garrett. É só

por isso que enfrento chuvas e tempestades.

 

MJC – Um dos aspectos mais interessantes, relativamente à organização da

correspondência de Garrett, é precisamente essa organicidade de que fala. Quando

se tem uma figura tão complexa (e completa) como Garrett, que se tornou conhecido,

não apenas pelo facto de ser o introdutor do romantismo e um impulsionador do

teatro em Portugal, mas também pelo seu lado mundano e público, é importante

o acesso à sua correspondência, para aprofundar lados mais ocultos da sua

personalidade, não lhe parece?

 

SND – Sim. Mas alguém poderá dizer “não interessa a personalidade, interessa a

obra”. A estes eu respondo que a correspondência integra a obra do Escritor. Esta

correspondência traz dados novos, que podem modular ou modificar a compreensão

da obra. Dou um exemplo: a correspondência confirma que Garrett integrou mesmo

a Maçonaria. Mais ainda: o tio, Frei Alexandre da Sagrada Família, também poeta, foi

igualmente maçom. Isto dá maior relevo a um pilar da vasta e multímoda produção

garrettiana: que se funda na defesa da Ilustração, de um catolicismo eivado de

racionalismo, disto derivando as bases de uma sociedade mais democrática, que

idealmente defende, e pela qual luta, tendo, porém, que ceder – já que não quer viver

no Porto Pireu – e aceitar melhoramentos contingentes e quase sempre bastante

relativos e modestos. Considerando o mundo que ia ficando para trás, Garrett sabia

que o pouco era muito!

 

MJC – E a ligação à Maçonaria fica bem clara, nas cartas que dirige ao irmão, onde

precisamente descreve a possibilidade de conciliar a Maçonaria com a Religião. Isso

não lhe parece contraditório?

 

SND – Não é contraditório. É justamente disto que procura convencer o irmão,

Alexandre José, de que há bons católicos maçons. A Maçonaria, segundo Garrett, nada

tem a ver com Religião. Fica claríssima: está lá, com todas as letras, uma carta com um

apelo ao irmão para que entre na Maçonaria, “ordem augusta”, etc.

MJC – Ofélia Paiva Monteiro tem desenvolvido uma obra importante, relativamente

a Almeida Garrett, sobretudo os apectos da sua formação, o acesso à cultura inglesa

e francesa, que tanto o influenciaram, as suas viagens e os exílios. Quão importante

foi o contributo da obra de Ofélia Paiva Monteiro no seu trabalho e em que medida o

ajudou?

 

SND – A Professora Ofélia publicou A Formação de Almeida Garrett em 1971. Já se

passaram 41 anos. Este livro continua fresco, como se tivesse sido escrito agora há

pouco. Lá estão os laços familiares de Garrett, que tanto contribuíram para forjar-
lhe a personalidade; as amizades e vicissitudes do tempo de Coimbra; os primeiros

escritos, em que já se anuncia o polemista, o “Alceu da Revolução de 1820”; os exílios

com suas lutas e misérias; as obras escritas nesse tempo (1823-1826 e 1828-1832), que

vivamente preparam o espaço para a campanha que culminará com a vitória liberal em

1834; o período da Bélgica, de pouca produção e de tanta humilhação. É a formação

de Garrett, sob a ótica da daquela que se tornaria a intérprete maior de sua obra.

Depois disto, vieram outros estudos enfocando os vários aspectos da obra de Garrett:

o teatro, a narrativa, o estilo inigualável, o Garrett pedagogo, os escritos inacabados,

etc. Tudo isto foi reunido agora pela Professora Ofélia em Estudos Garrettianos,

publicado em 2010, pela EdUERJ, no Rio de Janeiro. É uma obra completar a A

Formação de Almeida Garrett. A compreensão mais madura que passei a ter da obra

da Professora Ofélia mostrou-me que é preciso ler Garrett com enquadramento,

com conhecimento o mais aprofundado possível de seu tempo e das relações que foi

travando ao longo de vida. É com este esquadro (das “relações”) que o comprendemos

melhor, com visão crítica (ou seja, algum distanciamento), sem ceder às simplificações

anacrônicas (que fariam dele um “conservador”, como querem alguns).

 

MJC – Na introdução à obra, refere-se a Almeida Garrett como alguém que procura

o muito aristotélico “justo meio” (p. 41). Como é que alguém que participou em

acontecimentos políticos tão “radicais” fala em “justo meio”? Será que a idade e a

experiência lhe amaciaram os impulsos? Ou haverá outras razões?

 

SND – O “justo meio” vem-lhe já em 1834, quando acaba a guerra civil. Está entre os

vencedores, mas não aprova, por exemplo, as perseguições aos católicos no Norte

movidas pelos amigos de D. Pedro (os devoristas). Elege-se deputado em 1839 e logo

vai às Cortes pugnar pela liberdade religiosa. Está, portanto, nesse momento, contra

os liberais. O “justo meio” de Garrett pode ter outro nome também: independência de

opiniões. Já nos anos 40, trava uma luta contra a ditadura cabralista. Mas não aprova

a aliança dos patuléus (que também lutam contra os Cabrais) com os miguelistas.

Garrett quer uma união da família liberal em torno de princípios democráticos

(ordeiros) porque sabe o que são as guerras fratricidas e os exílios. Está lá nas Viagens

na minha terra: “toda guerra civil é triste”. Está nas cartas ao irmão o temor que tem

de ter de viver um terceiro exílio, o que afinal não se deu, porque evidentemente fez

por evitar.

 

MJC – Sei que estão publicadas no Brasil as Cartas de Amor à Viscondessa da Luz e

creio que até foram publicadas primeiro no Brasil e só depois em Portugal. O que

acontecerá com a Correspondência Familiar? Também já tem edição prevista no Brasil?

SND – Sim, a Correspondência Familiar vai sair no Brasil, mas não agora. Também

porque uma edição brasileira exigiria adaptações que não posso fazer neste momento,

por absoluta falta de tempo. Tenho prazos a cumprir: entregar a Correspondência a

Rodrigo da Fonseca Magalhães em 2014 à IN-CM.

 

MJC – Então esse é o próximo projecto? E como fica a actividade poética no meio de

todos esses projectos?

 

SND – Sim. As 68 cartas (todas inéditas) do Garrett ao Rodrigo comporão o próximo

volume. Tenho um livro de poemas já quase pronto, intitulado Tercetos Queimados,

que devo publicar em 2013. Preparo agora uma OFICINA de poesia, na Estação das

Letras (Rio de Janeiro), que começa dia 10/9. Vou trabalhar com leitura e escrita. Só

poesia contemporânea brasileira e portuguesa! Estou animadíssimo!