Entrevista a Luís Filipe Silva por António Pacheco

«Os Anos de Ouro da Pulp

Fiction Portuguesa» – Entrevista a Luís Filipe Silva

Há coisa de três anos e meio recebi um texto de João Henriques, que conhecera recentemente numa formação de escrita criativa, pedindo leitura. O texto chamava-se «A Ilha» e transformava a Madeira num espaço abandonado, tomado por uma criatura com poderes telepáticos que tornara a vida num verdadeiro pesadelo vivo.

Em breve passei a frequentar a casa do João e em cima da mesa encontrei uma maqueta do que viria a ser a versão final do conto «A Ilha», com uma imagem no topo da página que nos transportava de imediato até às antigas publicações de Pulp Fiction (aquelas revistas que se compravam nos quiosques e se liam com o ânimo de quem não descura uma dimensão literária que não pode ser esquecida: a da leitura recreativa).

Mas o interesse desta brevíssima narração está em que olhando a maqueta e tomando à letra o que se dizia por baixo do título, inquiri o João porque não o sabia autor de «A Noite Em Que a Morte Morreu» e «O Regresso D’ele». Ao que o João, no seu preciosíssimo humor negro (adjectivo manifestamente insuficiente), respondeu… «Pois, nem eu».

Aqui está o ponto de partida para irmos ao encontro de Luís Filipe Silva, num conhecido café de Belém: homem da pulp fiction, da ficção científica, com uma energia mental escaldante e um long coffee na mão (se vamos falar de pulp claro que tem que ser num café americano – penso assim que lá chego) que nos acompanhou numa conversa de mais de uma hora (e outras duas em off).

Luís Filipe Silva é autor de vários títulos, entre eles: «O Futuro à Janela» (Prémio Caminho de Ficção Científica», «Cidade da Carne», «Vinganças» e «Terrarium» (em colaboração com João Barreiros), para além de organizador da colectânea «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa», em colaboração com Luís Corte Real.

Deu trabalho criar treze biografias com detalhes familiares, editoriais, fotografias…

São quase quatro anos de trabalho, porque o concurso através do qual tudo isto começou teve início em 2008.

Como surgiu o concurso?

De uma proposta minha para fazermos uma antologia de pulp fiction em português para a Saída de Emergência. Inicialmente era para ter uma mistura de contos antigos e modernos, mas encontrámos dificuldade em fazer isso num único volume. Uma boa selecção de autores de qualidade, como o Dinis Machado, o Reinaldo Ferreira, até o Ross Pynn, estavam a ser de certa forma reeditados e recuperados na época. A par disso, sentimos que para procurar conciliar ambas as épocas faria sentido ter dois livros.

Então optaram pelos inéditos…

Pensámos em convidar um conjunto de autores para escreverem no género e ver o que saía dali. De inicio era apenas fazer uma antologia de pulp fiction escrita hoje e apresentada como tal. A ideia era: os portugueses também aprenderam com os seus congéneres estrangeiros e conseguem hoje fazer uma coisa tão boa ou com bastante qualidade face ao que foi feito antes. Há um problema com as antologias feitas hoje, que é uma certa dificuldade em legitimar a pulp fiction. Enquanto que a ficção científica, e outros géneros mais ligados aos detectives ou ao western continuam vivos, a pulp fiction escrita hoje tem dificuldades em legitimar-se. Tentativas como as do Michael Chabon, que publicou uma ou duas antologias de autores modernos a escrever à moda da pulp fiction, não foram necessariamente positivas. Tem tudo que ver com o enquadramento. E é um género que vive muito da expectativa. Estamos em crer que este livro, caído do nada, em que viéssemos dizer que os portugueses também escrevem pulp fiction e especialmente com bastantes autores inéditos – uma coisa era se chamássemos celebridades, etc., mas também é um género em que poucas pessoas se movimentam – teria caído num deserto de atenções.

E o projecto acabou por transformar-se neste livro… És uma pessoa imaginativa.

(Risos) Ao começarmos a montar o livro, começou a ocorrer-me que era giro fazermos um projecto que eu já tinha na ideia há muito tempo: a história fictícia da ficção científica em Portugal. Já tinha até feito um conjunto de biografias, mas nenhuma delas está aqui, era uma coisa completamente à parte, para fazer um artigo autónomo, com um artigo a falar daquilo que a ficção científica poderia ter sido se aqui em Portugal tivesse tido o mesmo dinamismo que teve lá fora. Mas eram só ideias. Dos treze textos, só três autores são convidados e os outros textos são da malta que se meteu ao concurso. A maior parte destes textos tinha uma qualidade tal e um espírito pulp tão entranhado que eu comecei a fazer um exercício de projecção: e se isto fosse ambientado? E se cada um destes autores fosse um autor de uma suposta era gloriosa da pulp fiction? Será que isto conseguiria convencer? E por algum motivo acho que se lermos os textos como tendo sido produzidos hoje, eles perdem uma certa originalidade, perdem um certo glamour em comparação com se pensarmos ou dissermos: isto foi feito há quarenta anos.

Já não sei quem é que dizia que parte do prazer de ler pulp fiction era pegar naquelas revistas antigas e naquele papel…

O tacto, o cheiro. Embora não seja possível reproduzir isso aqui, isso é sugerido.

Tanto que ao ler o livro sente-se uma sensação de prazer que vai além do próprio texto.

As antologias são fáceis de fazer depois de ter os textos. E se tivéssemos feito só isso seria uma perda de oportunidade de transmitir uma experiência de leitura.

Quase como fazer uma viagem no tempo.

E dar aos leitores a oportunidade de apreciarem cada conto por si só, porque ao diferenciar-se o layout, cada conto tem personalidade própria.

Isso sente-se.

Enquanto normalmente os contos mais fortes têm que ser colocados numa certa posição, os outros têm que fazer lastro para chegar a outro, etc., aqui demos oportunidade a todos os contos de sobressaírem por si mesmos, como um bónus de experiência de leitura que não seria possível de outra forma.

Contando que o aspecto visual do conto funciona como se nos levasse ao encontro da personalidade do escritor e à época em que foi escrito. E de pertencer a uma revista com certas características próprias, também. Havia muito a questão das duas colunas, etc. Dar toda essa ambiência de época.

Uma coisa de que mais tarde me apercebi foi que não tínhamos honrado as colecções de romances: a Vampiro, a Colecção X., etc. A partir dos anos sessenta houve um predomínio daquelas colecções e não tanto das revistas. O nosso visual foi orientado para a revista. Porque eu tenho um defeito: olho para aqui e só vejo erros, enganos, omissões e oportunidades perdidas.

Eu acho delicioso o pormenor que temos no conto da Ana Sofia Casaca, em que vemos o carimbo da Biblioteca Municipal de Almada. 

(Risos)

 

Não foste à Biblioteca Municipal de Almada, não estiveste lá com uma máscara a mexer em revistas antigas…

(Risos) Isto é uma honra aos meus quinze anos.

Então isto significa que a pulp fiction enquanto género depende mesmo de uma certa expectativa…

De expectativa e de uma postura de leitura. O que é estranho. É muito estranho… Não relativamente à capacidade de se impor, mas quanto à autenticidade do texto.

Isso porque são textos que têm muito que ver com o social. Quando vemos o detective Valente entrar numa sala cheia de gente rica e poderosa…

Bastante.

Quando vemos contos como aquele em que o Sentinela descobre o oficial nazi, tudo isso tem um lado social muito forte. Não será por isso que o livro não resultaria tão bem se não tivesse esse tal embrulho de que falavas numa outra entrevista?

Eu acho que sim. Se calhar as críticas que temos hoje a fazer são muito mais sofisticadas do que as críticas que tínhamos a fazer há cinquenta anos. Se calhar há cinquenta anos sabíamos muito mais facilmente quais eram os vilões e como vencê-los. E por que é que eles eram maus (Risos).

A Besta estava à vista… 

Agora é mais difícil explicar isso com relatórios e com estatísticas de bolsa e certas leis, mas isso são outras questões. Eventualmente eram tempos mais simples. Se calhar em termos mitómanos eram tempos em que se podiam identificar os bons e os maus. Eram tempos mais a preto e branco. E de facto uma coisa de que eu gostei bastante e que ajudou à elaboração deste conceito foi o facto de essas histórias, como «O Segundo Sol», etc., irem captar na perfeição a mitologia do estado novo, dos agentes da PIDE como agentes efectivos do mal, mas com uma capacidade de transposição como se estivéssemos nos anos quarenta contra os nazis. E achei encantador descobrir que no inconsciente dos autores estava submerso este tipo de mitos e de ligação com essa… pá, com esse tipo de arquétipo do mal. E também a nível dos descobrimentos. Um dos desafios abertos do processo de submissão do concurso era que se tivesse havido uma época de ouro da pulp em Portugal, os descobrimentos teriam sido abordados nos textos, com piratas, aventuras nas índias, etc. Seria natural, enquanto um dos grandes marcos da nossa história. E de facto houve pessoas que responderam ao desafio e que fizeram histórias muito boas nesse âmbito. É claro que depois não podemos fazer um livro só de um tema, então tivemos que diversificar e escolher os melhores de cada. Há uma mensagem inconsciente de certos autores, mesmo no tipo de linguagem arcaica e rebuscada que usam, e eu pensei: isto vai ficar bem se for apresentado como uma recuperação. Porque na prática é isso que parece fazer sentido. Quase que o livro está a apresentar-se como tal.

Ficção dentro da própria ficção?

Tem ficção dentro da própria ficção. Começando com biografias inventadas, que foram muito difíceis de escrever por causa das três orientação que regeram a construção do livro e de que me foi apercebendo ao longo do caminho. Uma delas era essencialmente respeitar a pulp a sério. Lá por dizermos: olha, temos aqui uma história alternativa da pulp, não podíamos de repente ignorar que de facto houve pessoas que trabalharam o género e que não foram reconhecidas, que faziam isto por amor ou para ganhar uns trocos fáceis, mas essencialmente por amor, porque ninguém enriquecia com isto, nem ninguém vai enriquecer com este livro. E isso obrigou-me a uma verdadeira pesquisa.

Uma das maiores singularidades do livro – que eu pessoalmente nunca tinha visto – é que em todo ele, de uma ponta à outra, não podemos descortinar o que é factual do que é ficcional, ou o que podemos ou não tomar por factual.

É preciso pesquisar, ir ao google e ver (Risos). Muito do trabalho aqui envolvido foi para pesquisar e verdadeira pulp. Não torná-la o centro das atenções, senão mais valia fazermos um livro sobre a verdadeira pulp, mas colocar-lhe um número suficiente de contactos e dar-lhe um suficiente número de indícios sem deturpar o cânone existente e sem também, a nível pessoal, desrespeitar alguns dos indivíduos aqui mencionados, mas acima de tudo procurar aquelas áreas cinzentas, aquelas partes ocultas e não cotadas da história, para podermos encaixar lá os nossos ganchos narrativos.

Ou seja, criar uma história paralela da própria pulp fiction portuguesa.

Uma das propostas para título do livro que esteve em cima da mesa foi «A história secreta da pulp fiction portuguesa».

Digo isto porque logo na introdução do livro há uma história da pulp fiction portuguesa, e ao lê-la o público em geral não tem forma de saber se um tal António Assunção, que é apresentado como editor e escritor existiu ou não, se Edgar Silveira existiu ou não. Existiram ou não?

Não existiram (Risos).

 

Mas existiram outros…

Houve pulp fiction em Portugal, mas por algum motivo – se calhar por brincadeira – publicavam como se fossem estrangeiros. E publicavam sem dizerem nada a ninguém. Frank Gold fazia isso, o Dennis McShade fazia isso, o Roussado Pinto, etc. Aliás, todos estes nomes estrangeiros que estão aqui são pseudónimos de autores portugueses (Abre o livro e mostra-me o primeiro parágrafo das dedicatórias). E no segundo parágrafo estão os correspondentes nomes portugueses do escritor. Por exemplo, o Edgar Caygil e o Ross Pynn é o Roussato Pinto, o Dick Haskins é o António Albuquerque, o Dennis Mcshade é o Dinis Mahado, etc. Havia uma consciência de brincadeira.

Que hoje há cada vez menos…

Claro. Houve situações, acho que foi na “Colecção X”, onde até surgiu um romance em que eles inventaram a biografia do autor e o suposto título original. Isto honra essa tradição, só que nessa altura não havia a internet para desmistificar.

Pois… (Risos).

Ainda hoje muitos textos estão ocultos entre os autores estrangeiros. Isso sempre me pareceu uma fraqueza. É uma brincadeira gira, mas quando levada ao exagero uma pessoa perde a noção de género, e os leitores não se identificam e não percebem que estão a ler coisas em português. Se esses tipos se tivessem assumido como autores portugueses… Há aqui vários motivos: o motivo económico, o motivo da legitimidade e o motivo da censura, porque às vezes havia coisas que não era conveniente assumir-se. Mas se eles se tivessem assumido como autores portugueses, possivelmente hoje teríamos uma história do género um bocadinho mais forte do que temos. Assim, só alguns carolas que se conhecem uns aos outros e vão lendo alguns artigos é que sabem quem eles são.

Então podemos dizer que existe mesmo uma história secreta da pulp fiction portuguesa.

Acaba por haver uma história secreta da pulp fiction portuguesa, que agora já não é tão secreta para quem ler um conjunto de artigos em certos jornais, mas eles não estão todos recolhidos num livro, e era preciso um livro com entrevistas a várias personalidades para recolher todas essas histórias. Isso era um trabalho monumental, mas fundamental. Nós não nos achámos capazes de fazer isso, mas isto (aponta para o livro) de certa forma acaba por ser também uma achega como quem diz: há coisas giras, devíamos contar esta história. Nós não estamos a contar essa história, estamos a contar a história ao lado. Gostava que isso saísse como efeito secundário do livro.

 

Ao longo da primeira metade do séc. XX a pulp fiction acabou por tornar-se um fenómeno literário duradouro que criou uma tradição de produção literária de baixo custo, especialmente nos países anglo-saxónicos…

Essencialmente. Mas em Espanha também houve coisas como as «Novelas de a duro» ou a «Nueva Dimensión» – que eram folhetins escritos por espanhóis e publicados por poucos vinténs – e que duraram até aos anos setenta, até uma década antes da queda do regime franquista. Muito boa ficção científica, por acaso. Em Itália houve um género muito específico de histórias de terror.

Mas na Inglaterra e nos Estados Unidos a pulp vendia, produzia-se a sério, havia muita gente a escrever e a ler, e isso serviu para estabelecer um género com certas características identificáveis, enquanto que em Portugal foi sempre completamente marginal. Podemos falar de uma literatura pulp portuguesa ou são realidades incomparáveis?

Eu penso que se pode falar de uma literatura pulp portuguesa, mas do que eu conheço era uma literatura de folhetins, muito influenciada pelo estrangeiro, muito baseada nas traduções. Uma das propostas base da história ficcional deste livro é que os portugueses não tiveram vergonha de escrever em português como um português, com nome português e em situações que se passavam cá, e, mesmo influenciados pelos estrangeiros, situarem as coisas cá e construírem toda uma mítica em volta da realidade portuguesa.

Vemos detectives a actuarem em Lisboa… Algo que não estamos acostumados a ler.

Há aqui o fenómeno do Capitão João Silva (risos). O capitão João Silva a comando de uma nave pelo espaço inter-estrelar, durante muito tempo era uma sátira. Se ele se chamasse John Smith já não havia problemas com isso. Nós sempre tivemos esta dificuldade de assumirmo-nos como capazes de pertencer a uma ficção fantástica.

Talvez não fosse uma coisa tão próxima da nossa realidade. A sociedade portuguesa tinha características diferentes.

Lá fora também tínhamos o Macartismo, eles participaram na segunda guerra, eventualmente há aqui uma questão cultural.

Pelo menos duas ou três das histórias deste livro são passadas com personagens alemãs durante o período da segunda guerra mundial. É um tema mais próximo da pulp fiction tradicional.

A pulp fiction na América acaba nos anos cinquenta. As histórias de espiões vão acontecer durante os anos da guerra, um bocado de forma propagandística contra os alemães, com exaltação das forças americanas quando elas mais tarde entram na guerra. Depois vão-se estender obviamente no pós-guerra. Mas a segunda guerra apanha a pulp fiction já após o auge, que acontece em finais dos anos trinta. Nos anos cinquenta, o paperback veio finalmente matar a pulp fiction em termos de revista, porque o paperback torna-se muito barato, os autores migram porque o paperback paga muito melhor. Mantendo-se ainda um conjunto de revistas durante bastantes décadas, o grosso da pulp fiction vai morrer gradualmente, e depois vêm as transformações sociais e culturais dos anos sessenta e acabam de vez com a cultura mais básica, devido a todo aquele experimentalismo, que na literatura de género, com a New Wave, etc., se intromete, procurando dizer as coisas de novas formas. Depois nos anos setenta, com o Star Wars, com a expansão do cinema…

Não havia televisão, só havia os boletins radiofónicos…

A única forma de as pessoas contactarem com a ficção de uma forma regular era nos jornais, nos folhetins e na pulp fiction. A pulp fiction era o ópio dos jovens. Hoje são os videojogos. Os videojogos hoje são a pulp fiction de outros tempos.

E as séries televisivas, por exemplo.

E tal como nas séries, na pulp há coisas que são boas e coisas que são más. Hoje publica-se muita pulp fiction em reacção a coisas do dia-a-dia da sociedade moderna, mas nós é que não lhe chamamos pulp fiction. O que é o surgimento dos romances históricos e o pico dos romances históricos que não pulp fiction? O que é «O Último Segredo» do José Rodrigues dos Santos senão pulp fiction? O que é o Dan Brown que não pulp fiction?

Literatura popular…

Mas sem a profundidade de um clássico, sem a profundidade de analisar uma época. É uma literatura que reage a anseios, a questões, se calhar a gostos imediatos. O Dan Brown, só por si, inaugura, ou lança, ou redescobre um tipo de ficção que é a ficção pseudo-católica sobre mitos católicos. Mitos populares, mas de uma forma que não vai aprofundar a história do cristianismo.

Não achas que a antiga pulp fiction e ficção científica tinham um universo imagético muito mais rico do que esta nova pulp fiction – se lhe quisermos chamar assim – tem?

Pessoalmente tenho grandes problemas com aquilo que é a pulp fiction. A máquina editorial que existe hoje em dia, resultado da globalização e dos grupos editoriais, consegue impor globalmente tendências, temas e livros, o que antigamente não acontecia. As coisas chegavam cá por osmose. Os temas dos vampiros são os que hoje se podem considerar pulp fiction dentro da ficção científica. Se pensarmos na ficção científica como um género que já tem uma certa maturidade, capaz de falar sobre conceitos filosóficos, o devir da humanidade, sobre a nossa situação em relação com a tecnologia, a nossa responsabilidade, etc., temos um cânone e uma respeitabilidade que já não é a da maior parte dos seguidores. A maior parte dos seguidores está a olhar para as coisas simples dos zombies, e aqueles efeitos simples da vampirada, da fantasia. Quando se torna demasiado sério, o pessoal migra outra vez para uma pulp mais light.

Isso pode implicar um certo empobrecimento…

Falando especificamente do nosso país, há sempre uma quebra de cada geração com a anterior, e estão sempre a redescobrir aquilo que já foi descoberto.

Tenho percebido que tens uma perspectiva que procura uma pulp fiction que não negue o trabalho estético ao nível da linguagem.

Um livro é capaz de rasgos conceptuais… Há coisas que se fazem no cinema e não se conseguem fazer na prosa. E no teatro também se fazem cosias que não se conseguem fazer na prosa. Usar um meio para transpor outro meio é uma perda de oportunidade. Não há nada melhor na literatura do que a estética e a beleza da prosa, quando perfeitamente misturada com conceitos. A prosa simples não é o que pretendo. Acho que temos alguns exemplos clássicos de bons autores que transmitem ideias simples com prosa elaborada. Ideias complexas, ideias interessantes, perspectivas inovadoras sobre o mundo, apresentadas com uma prosa elaborada e madura.

Nota-se que isso foi tido em conta ao seleccionar os contos para este livro.

Um conto com um bom enredo mas mal escrito não entrava.

E o contrário também era válido?

Houve textos que estavam muito bem escritos mas não tinham história. Pus-me a pensar que eram quadros, vinhetas paradas no tempo, tal como a Virgínia Woolf fez. Isso não honrava a tradição do pulp. O pulp tem que ter uma história, tem que ter um enredo, no mínimo.

E a pulp fiction, vista como aquela pulp fiction da primeira metade do século XX., ainda tem lugar hoje em dia?

Acho que a pulp fiction existe hoje em dia, senão não a chamaríamos assim. Para todos os efeitos, noventa por cento do que nessa altura se escrevia era muito mau. Os próprios autores diziam que escreviam aquilo numa tarde ou em duas horas e enviavam ao editor sem rever porque precisavam de um cheque para pagar ao senhorio nessa mesma tarde. Eles faziam isso assim, só que é uma forma de vida muito ao limite. Isso obviamente não é literatura ponderada. Contudo, no meio daquilo é uma forma de subsistência.

Hoje continua-se a escrever para subsistir… E às vezes até para subsistir bastante bem.

(Risos) Infelizmente em Portugal nem isso (Risos). Não sei se conheces o Max Brand, que foi o tipo que começou as histórias do Shadow, que estão homenageadas na capa do livro: era um tipo com uma formação clássica. Ganhou tanto dinheiro com as histórias que escreveu – acho que ele escrevia um milhão de palavras por ano – que comprou um chalé em Itália e de manhã escrevia sonetos homéricos e à tarde escrevia histórias do Shadow e outros. Tinha formação clássica. Era um bom escritor. O Irmão do Faulkner escrevia pulp fiction, só que era um mau escritor, e conta-se que o Faulkner de vez em quando dava-lhe uma ajuda. O Jim Thompson era um tipo com uma vida destruída, bêbado, etc., mas escrevia histórias noir com recursos estilísticos que no pulp não era habitual ver-se. Na ficção científica, o Barrington Bayley escrevia histórias em que em cento e tal páginas descrevia uma teoria cosmológica inédita. É uma coisa espantosa.

O poder imagético é uma dascaracterísticas da ficção científica e da pulp…

Alguns conseguem introduzir conceitos filosóficos num conto de um tipo que está a atravessar o universo a ver uma história sobre si mesmo.

Olhando para a badana do livro – julgo que esta parte é completamente factual (Risos) – tive que ir ao Google confirmar…

(Risos) Há coisas que têm que se respeitar.

Cresceste a ler o Tintin, a Argonauta, a Vampiro… A literatura popular e de ficção científica fez parte do teu crescimento…

Pelo menos noventa por cento. Li muitos clássicos, e ainda leio.

Este livro é um regresso à tua infância?

Acho que é uma viagem para além da infância. É uma viagem para construir algo, construir um mundo no qual eu gostaria de ter nascido.

Gostarias de ter nascido?

Por que eu gostava de ter tido uma base lusitana, em português – para todos os efeitos a minha língua é a minha pátria, como o outro diz – mas poderíamos ter tido um género, um conjunto de autores que honrássemos, que seguíssemos, que contrariássemos, que rejeitássemos, mas com toda essa dinâmica de estarmos num país com uma literatura pulp viva.

E estamos a tempo de fazer isso em Portugal, ou a pulp fiction é um género completamente esquecido aqui no nosso cantinho?

Acho que não. Não sei o que é que vai sair daqui. Acho que há muita gente a escrever hoje. Há muita gente a ser ignorada hoje, também.

Pouco espaço editorial?

Há pouco espaço crítico. O meu problema não é a publicação. O meu problema é a crítica. Há três vectores para uma literatura se desenvolver: é preciso um autor, uma ideia e um conceito para escrever e para inovar. Depois é preciso colocá-lo cá fora para o conhecimento de todos, e é preciso quem o aprecie. E finalmente é preciso quem o critique. E criticar é um ler informado. É um ler conhecendo as referências, conseguindo isolar as preferências pessoais, com o objectivo de entender o livro como uma obra escrita. Enquanto o leitor se deixa embrenhar pelos truques de magia, o crítico é outro mágico: é o mágico que está na plateia a saber como é que aquilo está a ser feito e a olhar para a técnica e para a intenção e não para a ução.

Isso não existe em Portugal?

Existe muito pouco. E uma pessoa abre o The Guardian, uma pessoa abre o New York Time Review Books, e aquilo… Posso confessar uma coisa: só me preocupei em perceber a mensagem do «Evangelho segundo Jesus Cristo» do Saramago quando vi o livro criticado no The Guardian enquanto proposta literária inserida num cânone católico. Bolas, isto explica um livro. Isto explica a intenção do autor. Porque até então tinha lido bastantes críticas em Portugal em que os críticos estavam mais interessados em fazer prosa literária a respeito de uma crítica. Estavam a chegar a uma ficção em torno de uma crítica e não a fazer uma crítica ao livro. Era a altura em que as críticas eram obrigatoriamente obscuras, densas, mas não diziam nada. Assim não se vai a lado nenhum. E depois há a outra questão. Os autores hoje têm tanta dificuldade em publicar como facilmente são ignorados. E o serem ignorados é: há poucas revistas sobre novidades, as que são abertas e receptivas a todos os géneros têm pouco espaço para crítica. Por vezes num blogue encontra-se mais informação do que em certas revistas. As que têm artigos de fundo olham só para o estrelato e se calhar daí têm alguma altivez.

Há a Bang!

A Bang! é muito limitada e tem outro propósito. Aquelas revistas saíam semanalmente, ou quinzenalmente ou mensalmente com contos, com séries, para fidelizar um público, e inauguraram o fórum de discussão – era o facebook da altura. Quando o Hugo Gernsback lança a «Amazing Stories», apercebe-se do poder da base de leitores e inaugura o correio dos leitores, mas permitindo a troca de opiniões e a discussão entre estes: não só os leitores a dirigirem-se à revista, mas os leitores a discutirem entre si. E isto fidelizou as pessoas, começou a ajudar a formar as comunidades de fãs.

Falando nesse espaço crítico, que sendo pequeno é o que por cá temos, numa crítica que saiu no Público, feita pelo Rogério Casanova, ele dizia que renegar os cowboys, os corsários, detectives e extraterrestres só porque descobrimos os modernistas é o equivalente moral a renegar amigos de infância só porque ganhámos o totoloto. Em Portugal há um certo pedantismo que teima em ver a pulp fiction como um subgénero literário de menor importância?

Eu diria que sim. Não sei lhe chamaria tanto pedantismo como um receio da vergonha. Porque às vezes é difícil defender a pulp fiction quando não se conseguem explicar as virtudes dela. É um bocado como defender a Susan Boyle antes de ela abrir a boca em palco. Há pessoas que não permanecem o tempo suficiente na sala até que ela comece a cantar.

E em Portugal rejeita-se muita coisa antes de se abrir o livro…

Rejeita-se muita coisa pela capa e às vezes nem pela capa. Por exemplo, neste último Fórum Fantástico falou-se do António de Macedo…

O tal que tentou durante anos fazer uma longa-metragem baseada no conto “A Ilha”, do João Henriques, e não o deixaram… (Risos)

Esse mesmo. (Risos). À parte a parte ficcionada no livro (Na biografia de João Henriques, coincidência), ele foi um dos cineastas do cinema novo que foi um entusiasta do género fantástico. Está a ser feito um documentário em honra dele. Foi-lhe recusado todo o tipo de apoios, e é extraordinário como para certas coisas a censura é mais forte depois do 25 de Abril. É mais subtil, mais inteligente.

Nesse caso, o detective destas histórias tem que ser muito mais arguto (Risos).

Muito mais arguto. O vilão não está bem identificado mas vive ao nosso lado. É nosso vizinho e até concorda connosco em muitas coisas.

Já não é aquele agente das SS…

Já não é aquele agente das SS.

 

Está previsto algum seguimento para este projecto? Não sei se na Saída de Emergência ou não…

Eu tinha ideias. Há uma coisa que gostava de fazer, que era o best of da Falcão Lusitano. Eventualmente fazer uma antologia de autores modernos que escrevessem à moda dos autores que leram na biblioteca dos pais e dos avós. O Orlando Moreira dos dias de hoje a escrever à moda do Orlando Moreira de Antigamente. (Risos). O João Henriques a escrever à moda do João Henriques dos anos sessenta.

Na ficção tudo acaba por ser aceite.

É a lógica dos filmes históricos em que o gajo tem um relógio de pulso.

Ou uns ténis…

Exactamente (Risos). Isso era escrever um livro sobre as falsificações da pulp fiction que nunca existiu.

 

E este livro? Como é que tem sido recebido?

No global tem sido muito bem recebido. Há a reacção do pessoal que já conhece minimamente o meio ou seguiu a questão do concurso e espantou-se ao início mas percebeu logo que era uma brincadeira, e tens o pessoal que acreditou piamente… Há as pessoas que acreditam durante trinta segundos mas depois vão ao google e percebem logo que aquela gente não existiu. Ainda esta semana soube que o Jorge Magalhães, que é um dos nossos grandes colectores de histórias sobre o passado, e até é mencionado aqui… Já agora ficas a saber que a única parte verdadeira deste livro é este parágrafo (Abre o livro e ponta a página 413).

Então o livro tem uma página completamente verídica. O leitor pode ficar descansado.

(Risos) Contaram-me of record que ele (Jorge Magalhães) disse que estava a procurar nos livros de referência dele e não encontrava aqueles tipos lá. E estava a pensar: mas isto é verdade, não é… E foi só quando viu uma das fotografias, que são de gente conhecida, que percebeu.

As fotos das biografias são maioritariamente de gente conhecida. Actrizes…

Um mafioso de Chicago, por exemplo (Risos).

Fui-me apercebendo que conhecia algumas destas caras. 

Todo o aspecto visual foi com o Corte Real. Ele foi magnífico. Quando ele aceitou esta proposta de fazermos uma edição do passado, teve imediatamente a ideia de fazermos isto em duas colunas, com fotografias, imagens, etc. Eu nisso sou um zero à esquerda. Achei a ideia gira mas fiquei preocupado. Quando ele me mandou as primeiras maquetas eu olhei para isto e pensei: isto está a dar-me ideias para mais. Foi um trabalho de equipa extraordinário.

Quando o livro saiu e eu telefonei ao João Henriques, o que ele me disse foi que nunca pensou que tu levasses a piada tão longe (Risos). Não conheço nenhuma piada literária a este nível, conheces?

Existem coisas muto boas, feitas nos Estados Unidos. Mas se calhar não a este nível. A ironia aqui é dizer que esta literatura pode ter muitos defeitos, mas quando ela quer espicaçar, quando quer bater consegue bater. E depois acaba por ser penalizada na história por ser imposta como uma literatura adulta que teve coragem de criticar alguma coisa.

Já alguém te disse que se sentiu enganado?

(Risos) A recompensa de alguém que sinta enganado é acreditar que este país pode não ter um futuro maravilhoso, mas ele, leitor, acreditou durante aqueles instantes que teve um passado recente glorioso.

És capaz de receber um ou outro telefonema…

A falta de sensibilidade não se resolve.

António Pacheco

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