Uma das tendências recentes da literatura portuguesa é reproduzir um uso linguístico que remete para o ambiente rural. Isto acontece num período em que a sociedade portuguesa se europeizou e passou, grosso modo, de rural a urbana.
Em Os Demónios de Álvaro Cobra – Prémio Literário Cidade de Almada 2012 – Carlos Campaniço, através de um romance de estrutura clássica, com um narrador tradicional, que se senta de frente para os acontecimentos e os descreve tal como os vê, recua a uma certa autenticidade perdida. Isto acontece não tanto recorrendo ao uso deliberado de regionalismos, como em Aquilino, ou transparecendo um amor incondicional sobre o drama humano do povo simples, como em Miguel Torga, mas refletindo a visão exterior de quem, hoje, vive num mundo onde a imaginação foi subtraída à eficácia da produtividade.
É esta uma das razões pelas quais parte da literatura se tem refugiado num espaço onde as superstições – como é o caso de Campaniço – são possíveis. Se pensarmos num conto como Maldita Matemática, de Arkady Avertchenko, em que uma criança se subtrai à obrigação de resolver um problema matemático pela sucessiva efabulação de narrativas extraídas do próprio enunciado do problema, deparamo-nos com a necessidade humana de escapar das asperezas da luta pela subsistência através do refúgio em locais fantásticos.
Em Os Demónios de Álvaro Cobra, este espaço imagético – ou fuga – muito próximo do Realismo Mágico, abre a possibilidade de os personagens extrapolarem o vivencial e entrarem no campo do relacional, do íntimo, da luta interior por uma realização (im)possível. A acção passa-se numa aldeia alentejana dos finais séc. XIX, onde o positivismo crescente da época estava ainda muito longe de chegar. Daí as características aparentemente mágicas do personagem principal – Álvaro – despertarem diferentes impressões na população da aldeia: para uns, santo; para outros, bruxo.
A capacidade de descolagem de um texto em relação à realidade permite que a literatura se institua como campo de investigação, colocando possibilidades que no mundo concreto não podemos equacionar. Lembremo-nos da abordagem
Fantástica em Saramago, ou da forma como Thomas Mann faz uma troca de cabeças entre dois personagens, colocando a partir daí um conjunto de questões de identidade que não esgotam nem encontram resposta certa. Felizmente, não é possível fazê-lo no mundo real.
É preciso, contudo, distinguir entre imaginação e extravagante. Que a imaginação venha, sim – o mundo já é suficientemente tecnocrático. O problema começa quando uma certa corrente – é preciso dizê-lo – usa o absurdo apenas pelo absurdo, somando uma situação mirabolante à anterior. Toda a boa literatura se esquiva a isto; os grandes autores fazem-no por instinto.
Em Carlos campaniço essa preocupação é evidente. Apesar dos actos mágicos, o desenrolar do drama vai ao encontro dos anseios mais simples e humanos: a sobrevivência, os preconceitos sociais, as relações amorosas e a relação com o transcendente. O tratamento linguístico procura reflectir este ambiente. É preciso não esquecer que o texto literário é composto de uma matéria chamada linguagem e que esta deve transparecer o mundo em causa. É de um certo uso linguístico não completamente arbitrário que um texto se compõe.
António Pacheco
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