Ao passar, há dias, pelo Spleen de Baudelaire, reencontrei uma página esquecida e dobrada de onde acabou por emergir a citação que se segue, devidamente sublinhada:
“Dis-moi, mon âme refroidie, que penserais-tu d´habiter Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t´y regaillardirais comme un lézard. Cette ville est au bord de l´eau; on dit qu´elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, qu´il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton gout; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et liquide pour les réfléchir.”*
Não é verdade – se é que a verdade tem algum sentido! – que as árvores e o elemento vegetal sejam um inimigo frontal de Lisboa. Contudo, é um facto que a Baixa iluminista ilustra, como uma matriz, a vontade radical de domesticar a natureza. Algo que a torrente urbana que se iniciou nos anos sessenta acabou por dar, a seu modo, continuidade. Mas com uma diferença essencial: a Baixa obedece a um geometrismo provocado de tipo iniciático (como um romance matérico de plot garantido), enquanto a avalanche de betão, iniciada na segunda metade do século passado, obedece, com honrosas excepções poético-arquitectónicas, a uma cartografia ‘selvagem’: uma espécie de polifonia à solta, sem autor, nem “História”, nem rumo. O ‘media res’ em jeito de ‘arte bruta’.
A visão de sonho de Baudelaire mitificou, em 1869, a cidade literária, emprestando-lhe o prenúncio de uma geopoética moderna e fazendo da paisagem uma bênção lateral. Os ecos da reconstrução total do terramoto de 1755 não teriam, na altura, ainda mais de meio século. Algumas décadas depois do Spleen, Pessoa chegou a alinhar pelo mesmo diapasão em textos que vislumbraram outras metas que não as da atmosfera literária propriamente dita. Ora leia-se:
“Para o viajante que chega por mar a Lisboa, vista assim de longe, (a cidade) ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes desse delicioso lugar, desta abençoada região.”**
Na Ulisseia mitológica, a luz e a pedra avizinham-se da água ao mesmo tempo por dentro e por fora. E é nesse deslizar topográfico, à procura de um sentido sem termo, que Lisboa se transforma, dia-a-dia, numa lua simultaneamente nova e depurada, mas também cheia e frondosa. Apesar de a adjectivação ser pouco recomendável, assim é.
Dir-se-á que Cesário Verde descreveu na sua obra o dilema existencial do homem que pisa o mármore iniciático de Lisboa. O homem que, aprisionado, encara ainda assim o infinito. Tal como José Rodrigues Miguéis o caracterizou a bordo daquela sofrida ânsia que desejaria “rasgar o espaço em direcção a mundos novos”***.
* C. Baudelaire, Petits Poemes En Prose (Le Spleen De Paris), Garnier Frères, Paris, 1962.
** F. Pessoa, O que o Turista Deve Ver, Clássica Editora, Lisboa, 1993.
***J.R. Miguéis, Páscoa Feliz, Estúdio Cor, Lisboa, 1974.
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