O ser da literatura

Na última entrevista que Derrida deu em vida (Le Monde, edição de 19 de Agosto de 2004), o autor referiu-se à sobrevivência como um conceito vital da existência (do “Da-sein”). Sob este ponto de vista, o homem seria por natureza um sobrevivente marcado pela “estrutura do traço e do testamento”. O ponto mais interessante da consideração de Derrida situa-se no tempo, ou seja, no facto de a sobrevivência não dever ser encarada como algo que apenas se relacionaria com o passado e com a morte. Ao invés, a sobrevivência também deveria ser encarada como algo que se relaciona avidamente com o futuro. Por trás desta postulação está a noção de “desconstrução” – o reencontro de todos os possíveis que possam/poderiam gerar realidade – que é uma noção sobretudo afirmativa e que pressupõe, portanto, o radicalizar da oposição vida-morte (factor que Derrida considerou, em Parages – Galilée, 1986 –, como “afirmação incondicional da vida”).

A literatura é uma representação deste cenário que é, ao fim e ao cabo, um cenário do próprio homem. Mas uma representação por excelência. A literatura, mesmo antes de ser codificada pelos modernos como uma estética da escrita, sempre se reviu no apanágio do testamento, do vestígio e do traço. As literaturas orais que estão na base nos primeiros textos épicos ou revelatórios são disso exemplo. A recompilação dessas tradições (caso da actividade pós-exílica em torno do Antigo Testamento) e a fixação do discurso da crónica, dos panegíricos ou dos grandes feitos (toda a literatura que nasce a partir dos feitos de Alexandre-o-Grande, por exemplo) confirmam essa disposição. É sobretudo o ímpeto da literatura profética (que domina toda a alteridade islamo-cristã – em ambos os mundos – desde as Cruzadas até ao emergir Otomano) que, por outro lado, religa a dimensão da sobrevivência com o futuro. Na sequência do profético, o domínio utópico e ideológico (dos séculos XVI a XIX) envolvem já o enunciar literário moderno – de início romântico –, confirmando em pleno esta dupla face tão típica da sobrevivência.

Ao fim e ao cabo, a sobrevivência é o relato da vida para além da vida. Mas não do ponto de vista apenas do que resta, do que sobra e do que separa o que foi do que terá permanecido. A sobrevivência requer também um ponto de vista projectivo, associado ao que poderá restar, ao que poderá desaparecer e ao que sempre poderá ainda vir a acontecer. António Lobo Antunes confessou, um dia, a Ana Sousa Dias (numa entrevista ao Canal 2) que a Exortação aos crocodilos foi um “livro maldito”. Algumas das mortes aí relatadas aconteceriam depois tal e qual aos seus mais próximos (amigos e familiares). Também Cartas a Sandra de Vergílio Ferreira deu corpo a idêntica premonição que acabou por recair sobre o próprio autor. De um modo temático e não do mais estrito “self-fulfilling prophecy”, um romance como A Possibilidade de uma Ilha de Houellebecq é uma obra que, ao aventurar-se no território pós-humano, se propõe descarnar uma ferida sem fim – com incursões de dupla face (em direcção ao passado e ao futuro) –, através de um realismo e de um vitalismo inquietantes. Exemplos diversos de uma mesma prospecção.

A memória é uma espécie de anátema que a literatura realiza para contracenar com o desejo e com o futuro. Não é por acaso que a própria noção de trama (ou de “plot”) parte sempre de um ‘ter sido’ sobre o qual a complicação e o clímax constituem desafios e radicalizações que Derrida consideraria como “afirmações incondicionais da vida”. Tudo para que o desenlace (o apuramento dos possíveis sempre a germinar em aberto até aí) possa ser uma simulação funcional e apelativa do repto existencial que separa o mistério da sobrevivência. É por isso que os leitores adoram o suspense: puro modo de sobreviver – ao passado e ao futuro – de cada linha. É isso a literatura: uma vida que se crê para além da vida. Metáfora, ainda que contida, do maior dos desejos.

Luís Carmelo

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