Foi Garcia de Resende quem teve a feliz ideia de reunir, nos princípios do século XVI, num Cancioneiro poético, o que havia sido escrito em obras de vários autores, “passados e presentes”. A ideia antológica dos cancioneiros andava na moda, sobretudo em Espanha. E foi em pleno momento de viagens e império, ou seja, corria o ano de 1516, que o Cancioneiro Geral saiu a público. Para além de compilador desta imensa publicação e de cronista, Garcia de Resende foi secretário particular dos reis do século de ouro, D. João II e D. Manuel I. Um verdadeiro Maquiavel ao serviço do seu príncipe (até mesmo pelas destacadas responsabilidades que assumiu na famosa viagem a Roma de 1514, quando o rei português brindou o papa Leão X com… um elefante).
O prefácio ou “prólogo” que Garcia de Resende redigiu para o Cancioneiro Geral fala por si. No final, ao ilustrar as intenções da obra, o autor revela claramente o devir maquiavélico: “E porque, Senhor, as outras coisas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nem devo de tocar nelas, nesta que é a somenos, por em algua parte satisfazer ao desejo que nem sempre tive de fazer algua coisa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar alguas obras que pude haver dalguns passados e presentes e ordenar este livro, nam pêra por elas mostrar quais foram e sam, mas para os que mais sabem s´espertarem a folgar d´escrever e trazer à memória os outros grandes feitos, nos quais sam dino de meter a mão”.
É particularmente interessante o facto de o Maquiavel português se colocar numa posição algo platónica de quem nada sabe acerca do concerto das “cousas” que têm “grandeza”, dirigindo-se ao rei como o bom e fiel servidor que visou, com esta sua volumosa compilação, apenas contribuir para o seu “desenfadamento”. Por outro lado, para Garcia de Resende, não interessaria realmente que obras fossem (“nam pêra por elas mostrar quais foram e sam”), sendo bem mais importante o estímulo que viessem a suscitar em quem se dignasse escrever sobre os feitos portugueses. Aliás, é esse precisamente o tom do ‘incipit’ e de toda a primeira parte do texto: “Porque a natural condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, e ciência, manhas e gentileza sam esquecidos”.
Depois de ilustrar esta grande carência ‘comunicacional’ – como hoje se diria –, Garcia de Resende conclui do seguinte modo, no antepenúltimo parágrafo do “Prólogo ao Príncipe”: “Todos estes feitos e outros muitos doutras sustâncias nam sam devulgados como foram, se gente doutra naçam os fizera”. Faltara-lhe, de facto, esperar por Camões, João de Barros ou Fernão Mendes Pinto. Contudo, o Cancioneiro Geral acaba bem mais por ser uma recolha de poesia lírica e de “cousas de folgar”, do que de narrativa de teor épico ou até evocatório. Os temas do Cancioneiro reatam o século XIII trovadoresco (Rodrigues Lapa salienta “a súplica triste e apaixonada” ou “a coita de amor, em que o pobre poeta se revolve com sofrimento e com delicia”, caso de Duarte Brito: “Quanto mais vejo prazer/ tanto mais sinto o pesar/ já cansado de viver/ mas nunca de desejar…”) e acabam por estabelecer um contraponto interessante entre os chamados “espírito velho” e “espírito novo”.
Na abrupta passagem entre meados de quinhentos e o alvor intenso e descobridor de quinhentos, sente-se realmente a transição entre a verve bucólica que ‘salvaria o espírito’ e o escarnecer irónico que parece invadir o ambiente cosmopolita do Paço, tão bem expresso por Jorge de Aguiar: “Nam te mates cruamente/ por quem fez tam grande errada,/ que quem de si se nam sente,/ por ti nam lhe dará nada./ Vive, lançando pregam/ por u fores e vieres,/ que sam molheres, molheres!”. Hoje em dia, a incorrecção do “género” permite-nos ler estes versos com renovada sensação de “folgar”. Seja como for, no seu todo, o Cancioneiro Geral é uma obra seminal que situa diversas matrizes da poesia escrita em Português. Para além da função de “desenfadamento”, a obra é também, ao mesmo tempo, um alerta e um serviço prestados pelo Maquiavel lusitano a D. Manuel I. Raramente na história a literatura teve funções que apenas a si mesma servissem.
Citações a partir de Florilégio do Cancioneiro de Resende, Selecção prefácio e notas de Rodrigues Lapa, Textos Literários, Lisboa, 1960, pp. 9,10, 42, 43 e 44.
Luís Carmelo
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