O ‘fatum’ da literatura e uma efeméride

Saiu a público há precisamente dez anos, em Milão, uma obra importante de Umberto Eco sobre literatura. Trata-se de Sobre literatura (Sulla letteratura, Bompiani) que foi traduzida em Portugal por José Colaço Barreiros e publicada, em Fevereiro de 2003, pela Difel. A obra reúne ensaios diversos, de que retenho, olhando para o sublinhado da minha edição, uma óptima abordagem sobre a “representação do espaço com as palavras” (Les sémaphores sous la pluie), uma análise à geração de símbolos em que o autor consegue não falar de Peirce e ainda um fantástico texto sobre o significado dos aforismos (estando Wilde na mira).

Mas foi o ensaio inicial deste livro, intitulado Sobre algumas funções da literatura (e que nasceu de um discurso proferido pelo autor em Mântua no ano 2000), que acabei, ao longo desta década, por nunca mais esquecer. Muitas foram as vezes (passeio da pé, pausa rotineira ou ócio desventurado) em que, do nada, este ensaio me ‘subiu à cabeça’. Sempre me intrigaram, realmente, as razões que levam a memória a seleccionar os seus despojos. Razão pela qual recordo este “fado”, porque é disso mesmo que se trata.

O breve ensaio centra-se na ideia de inevitabilidade, entendida como ‘fatum’ que faz da literatura uma espécie de cimento heideggeriano da nossa existência. Como se o ser humano só fizesse certas coisas, porque sabe que tem sempre pela sua frente a morte. Este ‘ser-para-a-morte’ está na base dos exemplos que atravessam o fim do ensaio de Eco, caso do relato que Victor Hugo faz de Waterloo, em Os Miseráveis, sempre regido e visionado a partir dos olhos de Deus. As coisas sucedem-se, nessa arena ficcional, como teriam que ter acontecido. O simples facto de Napoleão ignorar a existência de um precipício num dos extremos do planalto de Mont-Saint-Jean não permitirá jamais inverter a narrativa, ainda que esse desconhecimento tenha significado a derrota diante do exército inglês.

Eco estabelece um interessante contraste entre este tipo de narração vertical, regida de cima para baixo, ao jeito de uma enunciação determinista, e o olhar de Fabrício que, através da pena de Stendhal, descreve a batalha de dentro para fora. A inevitabilidade explorada por Hugo é, ao fim e ao cabo, o fio essencial de toda a tragédia literária. Um destino traçado pelos próprios heróis, passando perto – por vezes pelo interior – de situações e factos que podiam ter valido uma redenção sempre adiada e sempre sonhada.

Ao contrário da hipertextualidade contemporânea, que permite fazer dum relato um ‘puzzle’ sempre reversível, esta genuína tradição da tragédia é, não apenas um intertexto forte da história literária, mas, sobretudo, um facto que estará na génese do próprio fazer literário. Eco termina o artigo que abre Sobre Literatura com uma conclusão deste teor. Leiamo-la, pois ela é cristalina e, claro, como não podia deixar de ser, profundamente irónica: “Creio que esta educação para o Fado e para a morte será uma das funções principais da literatura. Talvez haja outras, mas agora não me vêm à cabeça”.

Luís Carmelo

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