O último ‘Ponto de Mira’ relembrou Aluísio Azevedo e fê-lo no quadro de uma análise à prospecção moderna da realidade que, como se sabe, valorizou, quer a inscrição de um novo tipo de sujeito criador, quer a objectividade que esse sujeito acabaria por revelar e descobrir experimentalmente. Os trechos do autor de O Cortiço (1890) foram, na passada semana, comparados ao emergir do cinematógrafo, tendo a ênfase sido dada sobretudo ao modo como o mundo urbano, o movimento mais imediato das ruas e o encadeamento das acções do quotidiano iam surgindo transpostos e representados (neste caso literariamente).
Se recuarmos um século e aportarmos em Nicolau Tolentino de Almeida (1740 -1811), encontramos curiosamente alguns sinais de que este tipo de traçado iluminista e moderno estaria já em curso. Apesar de Pombal, Portugal não deixou de viver de costas para o grande devir iluminista franco-alemão da segunda metade de setecentos, embora tal não signifique, de modo algum, que a época se tenha convertido numa espécie de cartografia absolutamente em branco (existe um curioso ímpeto literário, neste preciso momento, na redescoberta deste período; veja-se o caso de As Luzes de Leonor de Maria Teresa Horta, já aqui abordado num outro ‘Ponto de Mira’, e ainda o caso mais recente de Macedo, uma história portuguesa da infâmia de António Mega Ferreira).
Como afirmou Claude Maffre, o campo das investigações de Nicolau Tolentino, “independentemente da sua própria pessoa (o mestre de retórica, o jogador, o fadista até), raramente se aventura fora da cidade (de Lisboa), que ele observa com uma minúcia extraordinária, fazendo da sua obra um documento cuja exactidão é fácil comprovar pelo cotejo com os relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram o país depois do terramoto (de 1755) ou com as obras de muitos autores contemporâneos”. Seleccionámos para exemplificar a febre de objectividade de Nicolau Tolentino um interessantíssimo soneto que se dedica, todo ele, a um motivo ancorado no dia-a-dia mais frugal: “A moda dos chapéus maiores de marca” (título do poema). Leiamos com toda a calma esta quase reportagem das ofertas de ‘última hora’ do Chiado:
“Amigo e senhor meu, de França ou Malta,/ Um chapéu mande vir à toda a pressa;/ A copa que me ajuste a cabeça/ Mas as abas na forma a mais peralta// A de trás que me fique muito alta,/ Presilha e botão, pequena peça; Estimarei que disto não se esqueça,/ Que a demora me faz bastante falta.// Gostei muito do invento, é bem traçado,/ Porque vi no Loreto, um certo dia,/ Muito povo a correr para o Chiado// Para ver um senhor, quem tal diria,/ C´um chapéu de tal forma desmarcado/ Que nem a gente a pé podia passar.”
O texto, moldado formal e retoricamente ao seu tempo, faz do objecto que representa uma iluminura realmente quotidiana (com referência satírica a aspectos que hoje traduziríamos pelo design – “bem traçado”), estando o “Eu” enunciador omnipresente na breve peça poética (“Gostei muito do invento” ou “Estimarei que disto não se esqueça”). Um recorte paródico e uma focalização desabrida, seja no tom, seja no modo como o torvelinho das ruas é retratado. A caricatura – bastante cinematográfica – podia, perfeitamente, não tanto ancorar no espanto dos irmãos Lumière (comparação mais clara em Aluísio Azevedo), mas sim num ‘apanhado’, uns aninhos depois, da autoria de Ferdinand Zecca já ao serviço da Pathé.
De salientar, para terminar, que a publicação das Obras Completas de Nicolau Tolentino de Almeida, numa óptima edição de Claude Maffre (no caso do poema em apreço – Volume I, Sonetos e Quintilhas, 2008, p.52), constituiu um esforço meritório, mas também um sinal emblemático do fim infeliz de uma grande editora: o Campo das Letras. Fica aqui a homenagem, não só pelos autores de nomeada que deu a conhecer em Portugal, casos de Rubem Fonseca e Patrícia Melo, entre outros, mas também pela colaboração activa que sempre manteve com o PNETliteratura.
Luís Carmelo