Este é o último editorial de um verão que, como todos, foi rápido, vertiginoso e sobretudo construtor de nostalgias futuras (geralmente difusas e sem objecto, prontas a conceder à memória um registo de evocação estética). Para que a circunstância seja celebrada com chave de ouro, relembro hoje aqui um livro que tem três décadas certas de vida, intitulado O Verão 80. Trata-se de uma recolha de crónicas de Margerite Duras escritas, no verão de há trinta anos, depois de um convite de Serge July do então fulgurante Libération para que a escritora escrevesse, entre Junho e Setembro, uma série de textos “que não tratassem da actualidade política ou outra, mas de uma espécie de actualidade paralela”, onde se enquadrassem acontecimentos de eleição e não forçosamente ligados à “informação corrente”.
Das peripécias do convite – e foram muitas –, Duras acabou por optar por uma longa crónica semanal. Daí que o livro (em Portugal editado pelos Livros do Brasil) publique todas as dez crónicas que evocam, com visão e discorrer apaixonados, factos variados como as colónias de férias de Antifer, a indústria mimética do turismo, os tristes jogos olímpicos de Moscovo, o “governo da morte” do Irão, a questão afegã e, já no final, o eclodir das greves de Gdansk – e sobretudo o silêncio forçado que então as envolveu. Mas para além do pulsar imediato do mundo, Duras também lucubra sobre a fuga de Montaigne do parlamento de Bordéus, a previsível morte do Xá da Pérsia, as cartas de Aurélia Steiner e a fome no Uganda. O texto reflecte uma verdadeira arte de composição que se joga entre níveis muito diversos de observação, informação e comentário.
No entanto, algo excede o simples – mas rico – território da crónica. Há nestes textos um vislumbre permanente de poética que testemunha o embraiar da palavra, a liquidez estética da corrente e a sintaxe solta mas povoada de uma intemporalidade dir-se-ia plena. Mas uma plenitude a saber a mar: “O mar está alto, parado, a sua superfície é lisa, perfeita, uma seda debaixo do céu pesado e cinzento” (crónica 5). Ou: “O mar é de um azul leitoso, não há vento que arrebate a história da jovem monitora (da colónia de férias de Antifer), outras crianças alertadas vêm escutar também, os veleiros dormem, uma bruma afoga a linha do horizonte e a procissão dos dinossauros de quatrocentos e doze metros de comprimento, de setenta metros de largura, das minhas longas e doces baleias de petróleo quebradiças e cegas como anguinhas de vidro, tão perigosas como o fogo, o vulcão, o diabo” (crónica 2). Duras fala das tempestades “que rebentam sobre a Mancha” ou do rosto entediado de Sadate, mas fá-lo com um prazer contagiante que torna a leitura deste volume num fluir doce que rapidamente se consuma. Tal como o próprio verão.
Para terminar, há um detalhe interessante a que não posso deixar de me referir. Trata-se da decisão de Duras em transformar estas crónicas em livro. Como a ideia de livro sofre de uma sacralização de fundo, que ultrapassa vontades, análises e juízos glaciais, a escritora como que se viu obrigaa a explicar a razão que a levou a decidir coligir estes textos em livro. Um psicanalista à francesa – um Lacan palavroso – enquadraria muito bem este ponto específico. Escreve Duras a propósito destes dez textos: “… era difícil resistir à atracção da sua perda, não deixá-los lá onde estavam editados, em papel de um dia, dispersos em números de jornais votados a ser atirados fora” (…) “Disse para comigo que já chegavam assim os meus filmes em farrapos, dispersos, sem contrato, perdidos, que não valia a pena seguir a carreira da negligência a um tal ponto”. Ora… e digo eu para comigo: se tu, Marguerite – posso tratar-te por tu… por uma vez? –, tivesses vivido no tempo da rede, onde tudo é dispersão, perda, fragmento e “negligência”, como irias fundamentar essa tua decisão? Enfim, um verdadeiro detalhe. O importante é a perenidade, o fulgor e o “laço” memorial deste teu belíssimo livro.