Camilo, o autor exposto.

No prefácio à segunda edição de Memórias do Cárcere (1862), Camilo tentou ajustar a sua ainda recentíssima obra em dois volumes às expectativas, ditames e juízos do público. Por trás da gestação do livro estava a prisão de mais de um ano (de 1 de Outubro de 1860 a 16 do mesmo mês do ano seguinte) que, como se sabe, resultou de apuros amorosos que eram vistos à época como ilícitos sem qualquer tipo de saída. Nem a visita do rei Pedro V à Relação terá valido a Camilo uma solução mais expedita e razoável.

Não deixa de ser curioso reler alguns passos deste singularíssimo texto, até porque, pelo menos desde os anos setenta do século XX, a posição do leitor/receptor passou a ser entendida como factor vital da significação literária. O escritor começa por situar a natureza do enunciado: “As Memórias de Cárcere foram escritas na convalescença duma grande enfermidade moral”. Uma possível erupção fórica parecia querer anunciar-se. Mas não. O primeiro parágrafo encarrega-se, de imediato, de realçar a necessária contenção: “Consistiu a minha luta em fingir uma estóica serenidade, que, tão ao revés da minha índole, vinguei e dissimulei. Assim mesmo haviam relanços no livro em que o propósito não lograra sopesar o espírito. Esses relanços desagradam-me agora, e hei-de cancelá-los espontaneamente. Ainda bem que de mui pouco me incomoda o arrependimento.”

Este desafio entre a explosão iminente e a quietude “estóica” aparece depois como um breve sarcasmo que se projecta nas próprias expectativas do público leitor: “Este livro esteve a naufragar, quando eu cuidava que ia velejando em mar de leite. O título dera esperanças, que o texto desmentira. Afizera-se o venerando público à ideia de que as Memórias de Cárcere eram uma diatribe eriçada de injúrias, sarcasmos e glosas ao escândalo, que desgraçadamente as dispensava, tão à luz do sol se desnudara arrastado por praças e tribunais”.

Este desencantamento, ou seja, a placidez que afinal de contas as Memórias de Cárcere reflectiam, acabaria, na ironia de Camilo – quem havia de dizer! –, por não o inocentar: “Saiu o livro, mentindo às esperanças de muita gente, que o esperava à feição da sua vontade para ter o prazer de me condenar. O resultado foi condenarem-me, porque raras vezes estas páginas se enlamearam no assunto lastimável que as sugeriu.”. A dupla condenação que Camilo coloca agora em cena – uma potencial, outra real – passaria, no entanto, ao lado da questão pessoal que tanto marcou o autor: “Para contrafazer ao desconceito que algumas pessoas votaram ao livro, saiu-me favorável o parecer de outras, que mostraram desejo de ver esta obra expurgada de algumas manchas que lhe afeiam a continente placidez com que discorre quase sempre arredada a minha questão toda pessoal, e por isso mesmo odiosíssima.”

Neste suave jogo de dissimulações, a imprensa também não seria esquecida. E não deixa de ser interessante o facto de a referência ser tão benévola quanto virada para um talvez inesperado julgamento em causa própria: “A imprensa periódica foi benigna com este livro. Nenhuma crítica, ao menos das que eu li, me infamou de escandaloso o escrito. Grande número de censores notaram e louvaram a inofensiva contextura destas historietas, que, em geral, miravam a fazerem-me ler alegremente. Se o consegui, esta suprema violência, que eu fiz ao meu espírito, devera ser tida em conta, não de habilidade, mas de muitíssima força de alma.”. Por outras palavras, e tal como é referido no início do prefácio, as Memórias do Cárcere dão sobretudo corpo ao “orgulho de quem se alevanta superior às dores e às afrontas”.

As ligações expostas entre a literatura e o real mais imediato são sempre evidenciadas através de episódios sem fim (conotações que se expandem como marés vivas). Tal como uma fractura exposta vive de narrativas que se multiplicam: uma dor que adora conceber os possíveis que a não teriam gerado. Não há, pois, obra literária que escape ao peso e ao alicerce de tais ligações expostas. É da natureza humana agir e reagir em função do imediato, imaginando cenários ideais, sobrepostos ou labirínticos. E a literatura é, de facto, um óptimo manto para recobrir essa infinda teia a que pertence também o pulsar do leitor. Mas não só. Sobretudo porque o lugar do crítico é necessariamente o lugar imaginativo do leitor.

O mais admirável neste brevíssimo texto de Camilo, para além da modelação da sua escrita, é a capacidade que o autor de Amor de Perdição – romance escrito na prisão – demonstra ao prever e dominar a complexa teia da recepção à sua obra e às ‘perigosas’ relações que ela, à época, estabelecia com o vivido.

Luís Carmelo

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