por Luís Carmelo
A explosão de uma imaginação verdadeiramente livre na literatura moderna (pós-iluminista), capaz de disputar codificações restritivas, acontece casuisticamente quando um género se recria de raiz (caso de Poe), ou quando os cenários de ruptura passam a dominar as vanguardas no início do século XX (Woolf, Zvevo, Joyce, Pessoa, etc.). Nada que narrativas pré-modernas não tivessem já abordado (Contos de Canterbury, Divina Comedia, Quijote) ou que as escritas mitológicas não tivessem já ilimitadamente desenvolvido (o triângulo ‘criacionista’ Zeus – Prometeu – Epimeteu é, neste caso, um bom exemplo).
A capacidade de reinventar a vida sem lemes pré-fixados não é algo novo, ou seja, exclusivamente moderno e/ou contemporâneo. O mundo pós-moderno contribuiu para anular um certo historicismo axial que desvendava redenção atrás de redenção através das artes imanentes do deus Chronos. Na verdade, não há época que possa exclusivamente reivindicar um salto da imaginação em direcção a um dado percurso narrativo. A tradição oral sempre ilustrou um fulgor imaginativo radical, o que apenas confirma a expressão de António Damásio, segundo a qual o nosso cérebro é essencialmente uma máquina “contadora de histórias”*.
No entanto, é um facto que o período que sucede à Primeira Grande Guerra Mundial condensa muitas das viragens plásticas e imaginativas que, mais tarde, se projectarão em todo o século XX. A reinvenção do tempo, não apenas através da abolição de fronteiras entre o tempo ficcional e real, entre o tempo psicológico e externo, ou ainda entre o tempo ‘aion’ (intensidade) e ‘chronos’ (diacrónico), constitui uma das marcas da grande viragem da época. O realismo perde o pé neste novo paradigma expressivo com que se rescreve e recria o mundo, enquanto a “poiesis”, no seu sentido original de uma linguagem e que se reinventa a si própria, adquire um renovado esplendor.
Entre as muitíssimas obras que se poderiam citar neste período, há dois romances – um de 1922 e o outro de 1928 – que convocam como ‘topic’ essencial dos seus enredos a domesticação do tempo. Quer isto dizer que se trata de obras em que o tempo não é apenas o sintoma de uma revolução profunda em curso, mas antes o objecto mesmo da abordagem. Curiosamente, ambas as obras funcionam por inversão (um homem que nasce velho e que morre bebé e/ou um homem que muda de sexo a meio da vida e que morre mulher), concedendo às demais circunstâncias da diegese um estatuto relativamente incólume, como se o facto fosse incorporado pela realidade como um dado plausível e objectivável.
Referimo-nos, como é evidente, a O Estranho Caso de Benjamin Button de F. Scott Fitzgerald, obra de 1922 (que terá tido como base uma afirmação de Mark Twain sobre o ‘pathos’ da existência) e o mais literariamente complexo Orlando de Virginia Woolf que, ao fim e ao cabo, recorre ao tempo como uma intensidade que acaba por dar à luz uma sucessão de heterónimos, embora não esquematizados, como acontece em Pessoa, mas aglutinados e desarrumados, como se nessa errância se propusesse um novo tipo de lógica. Porventura, Button e Orlando apenas terão em comum o fio partilhado de uma revolução literária, já que propõem figurinos muito diversos. Mas habita em ambos uma imaginação quase selvagem, livre, arredada de quadros restritivos e capaz de ridicularizar os sentidos mais fechados que lhes atribuam. É essa a sua desafiante lição.
*O Sentimento de Si – O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000. p.221
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