A necessidade de definir as origens e os fins, facto marcante de todos os relatos ideológicos e também do discurso que consideramos hoje como segmentadamente religioso, teve um impacto decisivo na literatura: o seu cariz narrativo. Por outro lado, a poética, ou seja a múltipla plasticidade a que a linguagem teve culturalmente que se submeter para poder dizer o indizível, também teve um impacto relevantíssimo na literatura: a produção específica de poesia. Colocando de lado estas duas codificações literárias fundamentais, o tempo e a narração, por um lado, e a poética e a poesia, por outro lado, sobra um terceiro elemento: o espaço.
Com efeito, o espaço e a descrição não têm uma história tão hipercodificada, decorrendo sobretudo, ao contrário do tempo e da poética, de uma regra empírica e cumulativa, ou seja: de uma herança casuística gerada pela própria prática descritiva no seio da literatura. É evidente que as mais diversas noções de objectividade (e da colateral invenção do sujeito com entidade descobridora e experimental), tão típicas do mundo moderno, se tornariam vitais para uma aferição do descritivo na literatura. As normas espaciais barrocas ou medievais, por razões muito diferentes, nada têm que ver com a urgência de focalização do espaço aberta no final de setecentos e sobretudo em oitocentos.
A reflexão levar-nos-ia longe (continuá-la-emos na próxima semana), mas importa, neste Ponto de Mira, referir um exemplo emblemático da temática e da época, neste caso, o romance O Cortiço de Aluísio Azevedo (1857-1913), publicado no ano de 1890, que descreve, com realismo insaciado, o Rio de Janeiro de finais do século XIX. A palavra desliza entre a ruralidade e a premência urbana, sendo os personagens recortados com contraste pictórico e com uma atenção cinematográfica que é cirurgicamente emprestada ao movimento: “As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão…”. A cinco anos do emergir do cinematógrafo, Aluísio Azevedo surgia aqui claramente como um pioneiro da imagem móvel e um descobridor da representação do imediato. A palavra ao mestre:
“Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta”
(…)
“Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.”
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/literatura/materia_415647.shtml
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