Almeida Faria: o “Nostos” – I

Em várias obras de Almeida Faria, casos de Lusitânia, Cavaleiro Andante ou Vanitas, a figura do anfitrião é recorrente. Em todos estes percursos, alguém sai de casa e parte para algures (independentemente da finalidade). Chega depois a esquecer-se de si e do seu destino, como se comesse uma flor de lótus e a reimaginasse. Encontrar-se-á, a certa altura, com fantasmas. Enfrentará as forças da natureza que ninguém controla. Confrontar-se-á sempre com o imponderável. Por vezes, ficará imobilizado face a alguém que seduz e subjuga. Inquirirá o mundo dos mortos, o além e o futuro. Transgredirá e enfrentará a adversidade e o destino, desenvolvendo capacidades próprias e explorando reacções desconhecidas.

Mas o facto é que será sempre recebido por bons anfitriões, em ambiente benévolo – momento ómega! –, num lugar singular, metafórico e por vezes questionador. Contará a vida a si próprio e aos demais. Regressará ao seu ambiente original (a figura do ‘Nostos’), depois de ter mudado muito. Já não é tão certo que seja acolhido sem ser reconhecido. Já não é tão certo que viva intensamente o reencontro com os seus (o mundo dos heróis esvaiu-se!). Nem é certo que deseje vingar-se e recuperar o que é seu, a não ser a “quête”, a busca incessante, como única razão a apropriar.

Mas é um facto iniludível que, no fim de tudo, de modo mais ou menos sacrificial (lembro sempre o destino de André no final de Cavaleiro Andante), alguém acabe por regressar à vida comum, à margem da epopeia e da história. O final de Vanitas ilustra-o de modo soberbo: “E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a Vanitas inerente a toda a arte?”

O anfitrião é – e continua a ser – na obra de Almeida Faria a metáfora da distância, do cosmopolitismo e da abertura ao universo. Embora exista uma fractura permanente nesta anunciada, mas nunca cumprida, completude. É como se o regresso de Ulisses, quase no final, fosse sempre prematuro; de tal modo que a voz de Circe ou de Tirésias se continuassem a misturar e a propagar indefinidamente no relato. No fundo, trata-se de um interessante reflexo da raiz contemporânea habitada pela oficina do autor, pela enunciação fragmentária e pelas circunstâncias criadas nos relatos que fazem conviver, de modo pendular, a memória, o diferido, o delírio e o iminente.

Luís Carmelo

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