Al berto e o barco que diz a água

O poeta Al berto foi um poeta singular. Morreu muito cedo, mas mesmo em vida a sua singularidade nunca esteve em causa. Não é muito comum ser-se de um tempo e adoptar o que esse tempo lega, no dia-a-dia, reciclando o que é matéria de código, moda, linhas reconhecíveis ou marcas – como hoje se diz em cada vez mais e imprevistos “mainstreams”. À correcção da época, ou seja, à incorporação destes aspectos que se tornam apelativos pelo espesso denominador comum que suscitam, Al berto preferiu fascinar pela incontenção rítmica do momento, pela captação rude e crua da vaga, pela inscrição – em jeito de levada – dos elementos puros, embora sem queda alguma para encenar o poético, de modo forçado, na arena estética.

Releio sete poemas de Mar-de-Leva de Al berto, publicados pela primeira vez, em 1980, em edição de autor. Como que se torna audível na errância a que os poemas convidam – sete que são um único – um rumor de águas que convoca a inquietação dos ventos. Como se desta poesia se visse o mar, ou melhor, se pressentisse a cosmogonia que terá transformado uma espécie de vácuo num lugar que se deseja enunciar: “a cidade que vem das águas”, “escuto o lamento das águas” e “em mim a lama… e o visco inocente dos teus náufragos”. Este testemunho telúrico é permeável a uma agitação maior; é essa a guarida que faz dos ventos letras sem molde: “uma cidade que eu suspeito ter sido construída com vento suão”, “os ventos varrem, os ventos ainda uivam em todas as frestas…”, “lugares distantes e sombrios, habitados pelo último cavaleiro dos ventos” ou ainda – “A noite chega-me irrequieta de cícliocos ventos”.

A terra, o barro do verso, cobre depois esta matriz de teor líquido e plena de inquietude. Tudo começa pela mais óbvia antropomorfização: “paisagem irreconhecível do teu rosto”, “quando cantas saem-te sons puros da boca e sorrisos…” – ou – “as pedras acendem-se por dentro, reconhecem-me”. Da antropomorfização à empatia com a dor profunda da terra, vai um passo: “alastra-me em redor do coração…”, “lembro-me das pedras mortas dos teus pulsos”, “o  peito rasga-se-me”, “sobem-me vozes calcárias à garganta” – ou ainda, fundindo elementos – “em meu peito doído ergue-se esta raiva dos mares-de-leva”.

Muitas vezes os pronomes possessivos (e os pessoais reflexos) obliteram a clareza e turvam a leitura, mas a verdade é que as depurações típicas de uma oficina cirúrgica nunca preocuparam Al berto, para quem a voz profunda era um geocorpo em toda a sua genuína expansão. A fusão sexual do Eu, que na poesia de Al berto quer tão-só sinalizar um Eu real – e não outras normativas da teoria –, é clara nestes poemas seminais do autor. Ora leia-se: “teu olhar é o mosto dos nossos desejos” , “teu corpo adquire o sabor misterioso das algas” ou – “diluíste-te  nas veias das marés, na saliva do meu corpo sofrido”. E mesmo quando o afastamento do objecto amado – metaforizado pela “terra” – se prefigura, idêntico aceno da pele extravasa a voz impaciente do sujeito que parece cantar: “tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro”, “(tentei) enfeitar-me com tuas luas brancas, pratear a voz…”, “aceito o desafio do teu desdém” – ou ainda – “cremalheiras da noite ressoando no limite do corpo”.

Uma poesia destas não pode ser regional. É uma poesia que fala dos abatimento do mundo, das fissuras do ser ou da nevralgia de um olhar fragmentário, mas universal. Al berto, grande poeta do ‘fatum’, partilhou na sua poesia a ‘Via Dolorosa’ a que escapou o ‘pathos’ da palavra, o disfarce retórico, o programa literário, o manifesto localista ou a performance ‘explicada às crianças’. Uma genuinidade não se declara, nem se acopla em legenda sob a imagem que refere. Uma genuinidade vive do barco que diz a água, da terra que diz a mão que a teceu, do tear que diz o tecido refeito, escrito e rescrito. Esse encantamento, próprio da ilusão profética, cabe, se não por inteiro em vasto caudal, na múltipla obra que Al berto nos deixou. Mas em Mar-de-Leva, convenhamos, pressente-se já tudo isso.

Luís Carmelo

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