Lêem-se versos como – “A memória é hoje uma ferida onde lateja a Pedra do homem, hirta como uma sombra num sonho” – e a questão que imediatamente se coloca é esta: que fronteiras traçam estas imagens? Porventura, delimitarão espaços onde se digladia o teor que faz esta escrita ser uma poesia que diz, mas que diz, mostrando, ao mesmo tempo, a carne viva que dita a urgência de ter que dizer. Daí que não haja, muitas vezes, tempo para instalar os andaimes da retórica e a voragem – o ritmo largo – acabe por se sobrepor à lentidão estudada e depurada da sintaxe e das imagens límpidas, noutras atmosferas sempre muito polidas, trabalhadas e determinadas pela pose literária.
Al berto está longe dessas oficinas almofadadas onde o arear da poética é um moldar quase solene da prata. Mas isso não significa que o tom filigrânico não ressurja no meio do impetuoso caudal: “tuas mãos de neve”, “luas incendiadas”, “os lábios incendeiam-se com vinho” – ou ainda – “cintilam peixes pelas paredes do quarto” – são disso óptimo exemplo. Imagens com figurações da intimidade, figuras de fogo, fisionomias do excesso.
Se aliarmos a disposição pioneira e “vitalista” de Al berto – tal como seria chamada no final dos anos noventa – a textos como os de “obsessividade íntima”[1] de Herberto Helder ou da “art brut”[2] de Joaquim Manuel Magalhães, entramos num mundo de metamorfoses e de abismos matéricos. Os exemplos de Mar-de-Leva (1980), que continuamos a revisitar desde o “Ponto de Mira” de há duas semanas, falam por si: “O sal tornou-se rubro e cospe flores…”, “na memória ficaram os sinais dos bosques ceifados…”, “para que possamos sobreviver ao estrondo da pólvora…”, “da água enfurecida irromperá o desasatre” – ou, num tom de glorificação trágica: “na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição”.
Esta glória semeada no coração do abismo dita uma outra característica de Al berto: o propósito dramatúrgico que envolve o relato como um água que se insinua, revolta, num aquário em permanente clímax. As vozes realmente interpelam, interrogam e contracenam com a densidade crua do Eu. Vozes de segunda e da primeira pessoas debatem-se no palco, ao mesmo tempo, sacrificial e narcísico que se vai enunciando: “onde estarão as tâmaras maduras das tuas palmeiras?”, “que murmúrio terão as pedras do teu silêncio?”, “sabes, as aves aquáticas…” ou “é tarde meu amor, estou longe de ti…”. Este relacionar íntimo e questionador parece indiferente à asserção que o corpo ininterruptamente veicula: “apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam”, “não consigo dormir com esta ferida” – ou – “levanto-me e saio para a rua”.
Seja como for, à moda de um coro que se levanta do silêncio de fundo, nos finais, a intemporalidade acena para superar a catástrofe. Esta estratégia de (verso de) ouro surge, de maneira clara, nas seis anáforas do final do poema 7 de Mar-de-Leva. As seis imagens que aí se desdobram são regidas pelas formas verbais “Acostam”, “Agitam-se”, “Se abandona”, “Pernoita”, “Cresce” e “Perdem” – e colocam em evidência o ‘não dito’ matricial dos poemas do livro: a perenidade que subjaz à transformação e que se imporá para além do tempo da história e das narrativas que o iludem. Daí, também, o apelo da infância como signo de pureza e perspicácia de um tempo que parece viver fora da respiração do tempo comum: “encolho-me no leito estreito, no fundo dele, onde o linho já não fulgura”, “por onde andará o Cabecinha? E a Tia Clementina? E o Cisisnato?” – ou ainda, em jeito de ‘quête’ sem fim – “procuro no fundo das algibeiras os bonecos da bola”.
[1] Como escreveu o poeta e ensaísta, Joaquim Manuel Magalhães, em Rima Pobre (Editorial Presença, Lisboa, 1999, p. 143).
[2] Como assinalou Fernando Guimarães em A Poesia Portuguesa Contemporânea (Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2002, p.157).
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