A literatura, a rede e os livros: novos desafios

Faz no próximo mês de Abril um ano que uma versão improvisada e actualizada do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare, está a ser enunciada através do Twitter. O projecto é da Royal Shakespeare Company* e conta com seis actores que dão corpo aos mais diferentes personagens da trama, escrevendo diariamente sobre as suas vidas e os acontecimentos do mundo em tempo real. Um desafio realmente contemporâneo e sobretudo aberto aos olhos de todos. Sem vestes platónicas, nem tempos de pose à Disderi.

É um facto que na rede nada culmina e tudo se processa, já que nela não existem pontos nevrálgicos ou zonas de clímax. O que surge, logo se remove e reconverte. A narrativa criada deste modo, por mais grelha ou guião para que remeta, não necessita de uma retórica baseada em analepses e prolepses (flash-backs e antecipações): o que nela conta é o registo que acompanha a mais pura imobilização do instante. O que nela cativa é a duração, a iminência imediata, o ‘estar lá’.

A propósito do caudal a que a rede convida, refira-se um outro facto interessante: o ano passado, Heloisa Buarque de Hollanda reuniu, na publicação Enter, 37 novos autores que se revelaram na rede. Ramon Mello, que colaborou com Heloisa Buarque da Holanda nesta edição, referiu, em Dezembro passado, ao Portal Literal o que o motivou na organização deste volume: “Há uma produção literária muito intensa na rede. Logo após conhecê-la, recebi o convite para embarcar nesta viagem, que resultou em Enter“(…). “Pesquisei mais de 300 autores que têm relação directa com a rede, num trabalho que mistura texto, áudio e vídeo. O momento mais difícil é a selecção final. Muita gente interessante fica de fora.”. Seja como for, trata-se de um dos momentos editoriais do ano a reter e sobre o qual valerá a pena reflectir.

Este tipo de consideração a que Ramon Mello deu recentemente voz (no Portal Literal**) ou o formato de um projecto como o da Royal Shakespeare Company deixarão muito em breve de ser notícia. O mesmo se poderá dizer de todos os factos ligados à progressiva insolvência das livrarias clássicas. Os fenómenos ligam-se. À medida que os livros electrónicos vão dominando o mercado, também a edição tenderá a migrar do sigilo íntimo do papel para novos interfaces com duas características essenciais: mais proximidade entre enunciadores e leitores, mas, por outro lado, mais impessoalidade. Dir-se-ia estarmos face a um paradoxo inteligente.

Do mesmo modo que um LP ou uma cassete já são, hoje em dia, uma coisa aberrante para os jovens – e até para os menos jovens –, também, dentro de poucos anos, a ideia de um livro encadernado e de uma livraria com balcão de madeira tenderão a ser uma espécie de ‘desvario animado’. Apesar disso, a literatura continuará a sonhar. Tal como antes do livro o fazia. Tal como depois do livro o fará. Oralmente ou ancorada digitalmente – ou até na luz –, a literatura continuará a legitimar os desafios da existência quando confrontados com a esfera do indizível. Uma tempestade é sempre a inscrição de uma bonança.

* http://suchtweetsorrow.com/

** http://portalliteral.terra.com.br/artigos/heloisa-buarque-de-hollanda-reune-em-site-37-novos-autores

Cr.: http://media.photobucket.com/image/Shakespeare%20%25252B%20pop/onegirlcreative/POP%20ART/shakespeare.jpg?t=1218473804

Luís Carmelo

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