A genuinidade do nosso habitat

Um dos meus presentes de Natal teve como origem o senhor Godard e deu pelo nome de História(s) do cinema. É um prazer rever a intensidade das imagens analógicas perdidas entre fragmentos de uma arte maior. Desde que emergiu do pasmo fotográfico até se tornar na reinvenção da mente, invadida por sonhos de carne e por vozes de sombra. Uma fantasmagoria apetecível, de massas. Como diz Godard, a certa altura, nada no cinema se funda numa realidade histórica. Tal como o cristianismo, o cinema cria uma narrativa, concede-a ao público e diz: “Acredita. Crê!”. Terá sido desta forma que os deuses se colocaram em fuga, entre as proezas variadas de Muybridge, Nietzsche, Freud ou Proust, enquanto outros tantos novos deuses singravam ou brotavam da alma das multidões, das revoluções e sobretudo das solidões.

O cinema-arte emergente há um século, a par de uma renovada literatura que ia rompendo e irrompendo das cinzas da Primeira Grande Guerra Mundial, talvez nunca tenha perdido inteiramente a sua inocência, apesar da brutalidade e da violência da primeira metade do século XX. E nem chegou a sucumbir diante da roda vertiginosa das variedades de estúdio. Uma arte maior e, porventura, nem sequer uma arte. Um lapso. E, porventura, nem mesmo uma técnica, como sublinha o génio Godard, omnipresente narrador desta sua longa saga que se vai deixando ver entre uma nuvem constante de tabaco. Augúrios e incorrecções muito provocatoriamente actuais. Este DVD, já com cinco anos – na época actual um passadismo incorrigível! – não é coisa que faça moda, hoje em dia, bem o sei. Mas brilha para além do tempo em que foi criado e que evoca.

Nestes dias que já quase removeram as memórias do Natal e Ano Novo (e em que o mundo aparentemente se imobilizou), vi, por acaso, o poeta Tolentino Mendonça no ecrã fugidio da televisão. Disse, com razão, que deixámos todos de perceber como se habita este ser que é o homem. Preenchimentos ininterruptos: é disso que é, realmente, feita a hemorragia televisiva. E era a isso que Tolentino se referiria. Ao invés, o cinema, aquele cinema que Godard persiste em entender como sobrevivente a todas as mortes, como ressurreição quase pura, terá – ou teria – sido, possivelmente, a par da literatura, a última arte a dar ao homem a sugestão do seu verdadeiro habitat, das suas sombras, dos seus pasmos e das suas figuras mais virtuosas. Resistiremos.

Luís Carmelo

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