A “Gherush92”, ONG italiana que colabora com a ONU em matéria de Direitos Humanos, considerou recentemente a Divina Comédia de Dante uma obra “ofensiva e discriminatória” e pediu que fosse retirado do currículo das escolas italianas, ou pelo menos adoptado com extremos cuidados, porque os jovens – dizem – não têm “filtros” para descodificarem o texto.
De acordo com estes senhores da “Gherush92”, a obra – cito – “difama os judeus, retrata o Islão como heresia e, além disso, é homofóbica”. É claro que mais uma estéril polémica foi criada com este episódio, havendo gente (dir-se-ia normal, sem pretender ofender seja quem for) que reagiu em defesa da obra.
Se a história da literatura fosse passada por este crivo – descobrir laivos de racismo, islamofobia, antissemitismo e anticristianismo –, creio que ficaríamos reduzidos às obras (ditas ficcionais que agora se vendem muito) dos apresentadores de televisão. E a ONG ficaria contente a par de todos os novos partidos da correcção que dão corpo à vaga fascizante que parece estar, a pouco e pouco, a tomar conta do planeta.
Diz a presidente da dita cuja ONG, Valentina Sereni, que “a arte não pode estar acima das críticas”. Perguntamos nós: e as almejadas ‘proibições’ de todos os textos mitológicos, para já não falar da literatura – sim, pois os mitos atentam à “humanidade” com “H”… muito grande –, estaria acima de qualquer crítica?
O curioso desta patologia contemporânea que defende proibição atrás de proibição é que ela se assemelha em tudo ao dogma. Diga-se que o dogma, figura central de todas as religiões e de toda a intolerância, não pôde nunca competir com a capacidade quase infinita de reinvenção que é própria dos mitos (facto que Blumenberg tão bem explicou). Enquanto o dogma se pretende como resposta a um conjunto de interrogações fundamentais, previamente dadas, não admitindo, pois, a necessidade de outros questionamentos posteriores, o mito deixa-se trabalhar quase indefinidamente. O mito, tal como a sua filha mais ‘mal comportada’ – a literatura – não precisa de responder a perguntas, na medida em que imagina algo antes que a pergunta sequer possa surgir. A ficção que se antecipa à correcção e que arrisca a – livremente – metaforizar o mundo.
Sublinhe-se a reacção de pessoas como o escritor e crítico literário Giulio Ferroni – citado pelo Expresso* no mês passado – que considerou as declarações de Sereni “um frenesi de correção política somado a uma falta absoluta de senso histórico”, acrescentando que a Divina Comédia “precisa de ser lida no seu contexto histórico”. É o mínimo que poderia ter sido dito.
*http://expresso.sapo.pt/divina-comedia-considerada-uma-obra-ofensiva=f714541