A Arte da Descrição

A arte da descrição nem sempre é valorizada. A febre do ‘plot’ e a indução narrativa – a mesma que defraudou as expectativas oníricas iniciais do cinematógrafo – sobrepõem-se praticamente a tudo. Os editores prevêem sempre a qualidade e a intensidade de uma trama realizável, a par de uma linguagem capaz de imprimir individualidade e diferença, mas não receiam – diga-se a verdade – a falta de descrição como critério também relevante.

 

Contudo, a percepção de atmosferas, a construção do corpo e a efabulação espacial incorporam modos essenciais com que nos detemos na vida, à margem do rio da diacronia. Esta doce ilusão de perenidade é um esteio fundamental de resistência existencial e é também um dos modelos de fundo que sempre imergiu e emergiu na literatura. Como se dessa condição de quase cristalização do ser, a palavra literária brotasse à procura da sua fonte precisa.

 

Deixo um exemplo com mais de setenta anos de vida, escrito pelo punho de Teixeira Gomes em Carnaval Literário, e que retrata o interior de um café como quem olha para dentro de uma chávena à procura de magia na singularidade deixada pelo acaso das borras:

“Juntavam-se diária e infalivelmente no «Martinho» três tipos extravagantes e de tão singular aspecto que me inspiraram a curiosidade, em mim rara, de saber quem eram. Sobretudo depois de os ouvir, uma vez que abancaram na minha vizinhança. Após várias referências a brilhantes façanhas donjuanescas, falaram do Fialho e percebi que colaboravam no trabalho acintoso da horda então amatilhada para o desprestigiar, pretendendo mudar-lhe o antigo ceptro literário em mísera cana verde.

Um deles tinha a cara completamente hirsuta de uma tal rigidez de coiro que lembrava um ouriço cacheiro com um par de óculos escanchados no lombo.

Ao outro bailavam-lhe os ossos na pele, que pendia e se ajuntava, sem consistência, para onde o corpo se inclinasse; no rosto franzia em pregas à roda do queixo, e nas mãos os próprios dedos pareciam metidos em tripa seca.

O terceiro, de estatura extremamente exígua, os olhos mortiços, as feições angulares, o crânio desconforme e abaulado, ameaçando com o seu peso desequilibrar toda a máquina corporal; de todos o mais desdenhoso, mas levantava-se precipitadamente da cadeira, apenas assomava à porta do «café» algum figurão de importância, e corria-lhe ao encontro para lhe apertar as mãos entre as suas, cujos dedos mordiam como turqueses de caranguejo.”

(M. Teixeira Gomes, Carnaval Literário, Portugália Editora, Lisboa, 1960 – 1ª edição: 1939)

Luís Carmelo

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