A arte da descrição – II

O espaço pré-moderno era a representação de um propagar sem fim, de que o plano de Leibniz é, porventura, a derradeira versão orquestral. O espaço moderno resulta do recorte levado a cabo sobre essa substância considerada infinita, embora apeada da figura divina.

O figurino moderno foi codificado variada e disciplinarmente e reapareceu através de uma linguagem arbitrária que se desenvolveu entre a cartografia experimental marítima, a invenção da pintura dessacralizada dos países baixos de seiscentos e a aventura de fixação espacial enciclopedista/iluminista de setecentos. Locke havia referido o essencial quanto a estas linguagens: os signos que fazem a linguagem não são, de modo nenhum, a cópia da realidade, criando antes a sua disposição e lógica próprias.

A fotografia surgiu, no início do séc. XIX, como uma linguagem que representa o espaço, reinventando-o através de um espelhamento que sugere a ideia de motivação (como se fosse conatural a relação entre representante e representado). A história da fotografia tenderá a provar que a linguagem é sempre autónoma em relação ao que ela mesma suscita, independentemente das similaridades perceptivas e das tentações referenciais.

O espaço desenvolvido por dispositivos como a lanterna mágica e o cinematógrafo foi, na sua essência, o espaço fixado pela fotografia. Em alguns casos, este espaço tornou-se em lugar na medida em que se conformou com a experiência diversa e particular de pessoas concretas (apesar da extrema codificação, já em meados de oitocentos, por exemplo na tradição de Disderi).

Esta noção de espaço fez – e faz – também o seu tempo na literatura. Um tempo apeado do tempo, pois a representação do espaço tende a criar perenidade no seio do excurso literário. Veja-se, por exemplo, o modo como Fialho de Almeida retratou Cesário  Verde*. Note-se sobretudo a forma como a pena descritiva se apropria do real para o reconfigurar e reinventar de raiz, emprestando à circunstância do imediato – e à experiência concreta da observação – a autonomia que Locke, no livro IV do Essay Concerning Human Underestanding (1690), já havia consagrado:

 

“Alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma gravata escarlate, tinha bem a figura do carácter, e não se podia mirá-lo sem logo lhe ver, na ingénua arrogância, o quer que fosse do ser filtrado misteriosamente por uma estranha e aristocrática selecção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loira, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nas dos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”

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*Retrato de Cesário Verde escrito por Fialho de Almeida provavelmente no ano de 1882», Colóquio-Letras, nº. 93, Lisboa, F.C.B., 09/1986, p. 15.

Luís Carmelo

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