O universo da escrita de Cristina Carvalho move-se entre o fantástico e o romance de narrativa mais clássica. O conto marca também uma presença assídua, quer para adultos, como na sua participação na coletânea Contos Capitais, quer para um público infanto-juvenil como em Tarde Fantástica. Antes de assumir a forma de romance, Ana de Londres foi publicado numa coletânea de contos.
Dentro do fantástico, Lusco-Fusco é um breviário dos elementais, essas criaturas fantásticas que povoam os contos da nossa infância e regulam os elementos da natureza. A poesia pode não atingir a plenitude do indizível, mas seguramente que o torna mais habitável, pelo menos no nosso imaginário. Em O Gato de Upsala temos a descoberta da idade adulta. Agneta e Elvis partem com a ilusão de ver o Vasa, o maior navio de guerra até então construído e, quem sabe, subir bordo e conhecer terras distantes. O Vasa afundar-se-á diante dos seus olhos sem, contudo, lhes levar o sonho de uma vida a dois que então começava. Homem e mulher completando-se desde a origem dos tempos. Em Quatro Cantos do Mundo, o narrador entrega-se à arte de tudo ver e de se deixar maravilhar como só acontece ao viajante experimentado. Só ele consegue fazer a síntese da harmonia entre todos os elementos e os seres vivos, numa celebração da vida, consciente de que, no sonho, ultrapassamos os limites da nossa condição humana.
Nos seus romances surge a mulher na idade adulta. Todas as mulheres nascem já adultas, com essas obrigações a espreitarem-lhe a infância e a macerar a adolescência. Acreditam as mães, que poupam desgostos futuros às filhas se as prepararem para o que a sociedade espera delas. Um mundo sem saída. Então subsiste a dor e uma incontida necessidade de revolta ou de partir. Só lhes resta a opção de serem fortes. Não estamos perante uma escrita de militância feminista ou de vitimização. As mulheres são o motor da narrativa, tanto quanto os homens se anulam ou se embrutecem nas suas vidas. Foi assim em A Casa das Auroras que não é um livro de contos, mas de encontros de pessoas e da forma como encaram a vida, umas arrastadas, outras sem se saber ao certo se a viveram, algumas inconformadas… um rumor de vidas interrompidas percorre este livro. Um silêncio impõe-se a quem lê, não um silêncio qualquer, mas um silêncio que sustente o turbilhão interior que assalta o leitor, só desse modo somos convidados a entrar na Casas das Auroras. No romance Marginal, são mulheres as duas personagens fortes, das quais não conhecemos o nome. Uma delas surge dissimulada, numa escolha criteriosa de palavras, um limbo de ambiguidade que a esconde no texto. Foi seguramente difícil levar esse ardil até ao fim e, provavelmente, para muitos leitores, esse ardil permanecerá para além da leitura do livro. Em Ana de Londres, temos a história desencontrada de todas as mulheres que um dia decidiram partir, partir pela sua felicidade e ficaram presas às mesmas regras de que fugiam, as únicas regras que conheciam; aturando maridos manhosos, perdoando aos homens que as traíram, acreditando que um dia o Sol seria o centro das suas vidas. A sempre estrela da vida.
A escrita de Cristina Carvalho é acessível, plena de ressonância poética, capaz de libertar doses adequadas de dissimulação contrariando aqueles romances em que se percebem todas as palavras e todas as ideias do princípio ao fim. O deleite de uma escrita inteligente porque, mesmo ao leitor mais exigente, é conferido o direito ao sonho, ao fascínio de ser vivente e terreno, irmão e cúmplice de todas as criaturas e elementos. O portador eterno dessa sede insaciável de saber.
Esta é uma pequena, pequeníssima abordagem à obra de Cristina Carvalho. Corresponde às minhas leituras, sempre tão incompletas, a esse fascínio, a essa febre que cresce em nós sem a conseguirmos conter.
PNL, livros que integram o Plano Nacional de Leitura
Ilustradores:
Luco-Fusco, Pierre Pratt
Tarde Fantástica, Miz Lucas
Ana de Londres, Manuel San-Payo
Gato de Upsala, Danuta Wojciechowska
Quatro Cantos do Mundo, Manuel San-Payo
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