O PESO DA TRISTEZA DA ÉPOCA MAIS FELIZ DO ANO | Inês Salvador

Há muitos anos fui passar o ano ao Porto. Amigos vestidos a rigor e um reveillon muito animado, animadíssimo. Quanto mais as horas passavam mais animada ficava a festa. Comida, bebida, música, baile! Uma festa de reveillon! Às tantas, partiram-se uns copos e um pedaço de vidro entrou-me na sandália e cravou-se no calcanhar. As dores eram lancinantes e toda a tentativa de perceber exactamente o que passava com o meu pé tornava a coisa ainda pior. O vidro teimava em entrar na carne, tornando-se insuportável e invisível no sangue que espalhava. Levaram-me para o hospital. Ir para ao hospital não é bem o que se deseja numa noite de reveillon, mas estávamos tão animados, tão quentes da festa, que tudo nos parecia muito simples. Íamos num instante tratar do meu pé e voltávamos para a festa. E lá fomos, em estilo aventura, para as urgências, a ver se vendiam pés, se tinham pés para a troca, que fosse rápido, porque tínhamos uma festa para continuar. A urgência estava deserta, parecíamos só nós a estar ali. Claro, ficámos a achar, também era reveillon na urgência. Rapidamente fomos atendidos. Como não conseguia andar, deitaram-me numa maca e levaram-me para dentro.

Encostaram-me à parede de um corredor estreito e disseram-me que aguardasse. Fiquei sozinha. A festa calou-se na minha cabeça. Fez-se silêncio. Um silêncio terrível, frio, gelado. Um silêncio que se ouvia. Um silêncio de gemidos longos, estranhos, abafados. Gemidos que se entranhavam na carne mais do que o vidro, que doíam mais do que o som que conseguiam fazer. Não tinham força, eram só dor. Doíam-me a mim, que a mim já não me doía nada. O que me doía eram aqueles gemidos. Soavam-me ao inferno, ao purgatório, a catástrofe, ao fim do mundo. Já duvidava do sítio onde estava. Queria sair dali, queria ver o que era, desatei a fazer barulho, a chamar alguém. A maca moveu-se e fiquei numa sala. Passaram uns instantes e chegou um médico. Era alto, bonito, simpático, brincalhão. Brincava comigo, com o pé e com a minha circunstância. O médico não parecia ser dali, parecia que não ouvia os gemidos. Preparava-se para me tirar o vidro do pé. Sim, estava muito fundo. Era preciso cortar um bocadinho, mas ía ficar bem. E continuava a falar, ria, perguntava-me pela festa, pela vida, e riu mais ainda quando encontrou o vidro e o tirou inteiro. Orgulhoso, mostrou-mo. Eu estaria despachada.

Na mesma sala entrou outra maca que carregava um homem. Gemia como um animal ferido abandonado numa beira de estrada. Olhou para mim. Olhámo-nos um tempo, olhos nos olhos, os dois deitados, cada um em sua maca. O homem tinha os olhos em sangue, o cabelo negro ondulado era uma pasta de sangue, todo ele parecia sangue, mas os olhos… O sangue estava-lhe todo nos olhos. Parecia que toda a tristeza do mundo lhe cabia em sangue nos olhos. Senti uma espécie de desespero. Queria salvá-lo, como se pudesse. Ninguém merecia estar assim. Queria dizer-lhe que gostava dele, que não desistisse, que tudo havia de passar, que havia de ficar bem. Insistia em olhar para ele, queria que ele olhasse para mim, tentava dizer-lhe tudo olhando para ele, mas nem sabia se ainda me via, se me tinha mesmo visto. Um cortinado que se correu entre nós interrompeu tudo. Já estava um grupo de pessoas a cuidar dele e eu numa cadeira de rodas para sair. O simpático médico voltou a perguntar se estava bem, a despedir-se. Foi então que lhe perguntei se não ouvia os gemidos. O médico ficou sério. Sim, claro que ouvia. Insisti, queria saber. A custo lá me disse que muitos tinham tentado o suicídio naquela noite. Que era assim no Natal e fim de ano. A família, as preocupações, a vida, a falta de sentido, tanta coisa… Infelizmente era assim naqueles dias. Perguntei-lhe pelo homem que tinha estado ao meu lado na sala. Tinha-se atirado da varanda de casa, era um andar alto, mas tinha sobrevivido, estava ali, estavam a fazer tudo o que podiam fazer por ele. A cadeira de rodas deslizou pelo corredor até aos braços dos meus amigos. Estavam tal como os tinha deixado, parados no mesmo tempo. Eu é que fui ao inferno tratar um pé e voltei para a festa.

Encontrei este artigo que fala desta tristeza. Não me parece que seja o melhor artigo sobre o assunto, mas foi o que me passou à frente e me lembrou desta história. Isto existe, mas fala-se pouco, parece-me.

 

O PESO DA TRISTEZA DA ÉPOCA MAIS FELIZ DO ANO

 

Retirado do Facebook – Mural de Inês Salvador (2016-03-29)