Contos dos quais o leitor jamais sairá indiferente Adelto Gonçalves (*)
I
Não se sabe quando nasceu o conto na forma como o conhecemos hoje, mas um arremedo do gênero deve ter sido o primeiro relato que um homem da caverna tentou fazer a um(a) companheiro(a). Basta ver que até mesmo sociedades ágrafas guardam narrativas míticas, que foram transmitidas oralmente de geração para geração. Seja como for, apesar de suas raízes estarem fincadas na história da Humanidade, o conto como gênero literário é produto nascido no século XIX, quando a imprensa começou a se expandir.
A essa época, o leitor de jornais – obviamente, alguém alfabetizado e possuidor de alguma cultura – passou a se interessar por literatura, o que justifica o aparecimento não só de relatos pouco extensos nas folhas diárias, semanais ou quinzenais bem como de capítulos de romances, os chamados folhetins, que apareciam geralmente no rodapé da página. Obviamente, o conto, como narrativa curta, foi o gênero que mais bem se adaptou ao espaço limitado dos jornais, atraindo romancistas e contistas conhecidos como Guy de Maupassant (1850-1893) em Paris, Eça de Queirós (1845-1900) em Lisboa e Machado de Assis (1839-1908) no Rio de Janeiro.
Hoje, em tempos de informática, a narrativa curta acaba de ganhar novo fôlego, com a proliferação de blogs e sites que reproduzem microtextos, a já denominada microficção, ainda que já proliferem pelo menos desde o início do século XXI os chamados e-books, que reproduzem romances e livros de todos os gêneros, embora seja a sua leitura exercício difícil ao menos para aqueles que já carregam mais de cinco ou seis décadas às costas e foram formados na velha escola do livro impresso e das bibliotecas públicas.
II
Provavelmente, pressionados pelo espaço reduzido dos jornais e revistas, os contistas procuraram, ao longo do século XX, concentrar suas narrativas em poucas e resumidas linhas, sem deixar de se aprofundar no âmago de suas personagens. É de se reconhecer que, no século XX, os argentinos Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984) foram aqueles que procuraram, por meio do gênero, criar uma nova forma de fazer literatura na América Latina. Para tanto, procuraram romper com os modelos clássicos, produzindo narrações que escapam à linearidade temporal. Geralmente, suas personagens adquirem autonomia, graças à profundidade psicológica que lhes creditam.
No Brasil, não foram poucos os escritores que se sentiram influenciados pela maneira criativa de escrever narrativas breves que tanto Borges quanto Cortázar exibiam. Ainda hoje essa influência é visível. Como pode constatar quem vier a ler O Rei condenado à morte & outras histórias (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2015), de Edmar Monteiro Filho (1959), que reúne relatos inéditos e outros já publicados e premiados.
Entre os textos inéditos, está o conto que abre o livro, uma narrativa densa que tem como pano de fundo o futebol, curiosamente um tema pouco explorado pelos escritores brasileiros, embora essa seja a modalidade esportiva mais popular no País. É de se recordar que, desde o começo do século XX, o excepcional romancista Lima Barreto (1881-1922) sempre se opôs ao futebol, não propriamente contra a prática esportiva, mas contra um projeto político-ideológico das elites que procurava fazer do football um esporte praticado só por pessoas bem postas na vida.
O Rei, como percebe o leitor a partir da capa, é Pelé, o jogador mais famoso do mundo, mas o foco do conto recai sobre personagens secundárias, coadjuvantes, as “vítimas” do malabarismo do atacante, ou seja, jogadores obscuros – ou pelo menos não tão notórios e famosos como Ele (a quem se reverencia com a letra inicial em maiúscula) – que, em algum momento de suas carreiras, tiveram de enfrentar a sua genialidade.
O conto começa com Gustavsson, zagueiro da seleção sueca “humilhado” por um “chapéu” desconcertante na derrota da Suécia para a seleção brasileira, na final da Copa do Mundo de 1958. Avança com um relato que parece saído das páginas de um jornal da década de 1950 e que reproduz os acontecimentos de um dia de sábado à tarde, em agosto de 1959, quando, no estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari, no tradicional bairro da Moóca, em São Paulo, o Santos derrotou o Juventus pelo Campeonato Paulista e Pelé marcou um gol antológico, depois de aplicar dois “chapéus” em dois antagonistas e mais um no goleiro Mão de Onça.
O conto reconstitui ainda o antológico “gol de placa”, anotado por Pelé, em 1961, no Maracanã, em lance em que metade da equipe do Fluminense foi driblada pelo craque. E encerra-se com os acontecimentos de certa noite de domingo de 1969, no mesmo estádio do Maracanã, onde ocorreu o chamado “milésimo gol” marcado por Pelé diante do goleiro argentino Andrada, do Vasco da Gama. Desse episódio há um vídeo que mostra como “El Gato”, depois de sofrido o gol, dá socos no chão, inconformado por passar para a história como coadjuvante da glória do Rei do futebol. Anos mais tarde, Andrada voltaria às páginas dos jornais, desta vez acusado de ter colaborado em crimes praticados em 1983, à época da última ditadura militar (1976-1983) que tanto infelicitou a Argentina.
III
No segundo relato do livro, “Primeiro de janeiro é o dia dos mortos”, laureado com o Prêmio Guimarães Rosa de 1997, em concurso promovido pela Rádio França Internacional, o contista mergulha no inconsciente de um policial alcoólatra, às voltas com um assassino de mendigos na cidade de São Paulo. Em outro conto, “Alfinete”, um médico psiquiatra sofre uma estranha metamorfose diante dos olhos do leitor, assumindo as idiossincrasias e alucinações de seu paciente, tal como uma personagem de Franz Kafka (1883-1924).
Aliás, no conto “Água Suja”, Edmar Monteiro Filho repete também o cotidiano sufocante e burocrático de Kafka, ao reconstituir a vida de um funcionário da Justiça em sua tentativa de conciliar as divergências entre dois cidadãos. Em outro texto, “Cavaleiro negro contra o matador de cangaceiros”, igualmente criativo, o autor investiga a alma de um filho oprimido pelo pai, que busca conforto nos desafios de uma máquina de fliperama.
Em “Voador”, os personagens são Kublai Khan, Marco Polo, Italo Calvino, o rei V. e o próprio autor. Como numa fábula, o leitor pode viajar no tempo e no espaço, indo da China à Florença, passando por Amparo, pequena cidade do interior de São Paulo. Enfim, são oito relatos dos quais o leitor não sairá ileso e muito menos indiferente, tal a inventividade do seu autor.
IV
Edmar Monteiro Filho escreve e publica desde 1980. Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Paulo (1980) e em História pela Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (2007), com especialização em História Cultural pela mesma instituição de ensino (2010). É mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de São Paulo (Unicamp), título obtido com a dissertação “O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos” (2013). Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp.
Recebeu também o Prêmio Cruz e Souza de Literatura, com o livro Aquários (contos, Fundação Catarinense de Cultura, 2000). Publicou ainda Este lado para cima (poesia, edição de autor, 1993), Halma húmida (poesia, edição do autor, 1997), Às vésperas do incêndio (contos, edição do autor, 2000), com o qual conquistou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, Que fim levou Rick Jones? (contos, 2010) e a novela Azande (edição de autor, 2004).
Nascido na cidade de São Paulo, mora em Amparo, desde a infância, mas, como funcionário do Banco do Brasil, pôde viajar por quase todo o País recolhendo experiências que depois utilizaria em seus contos. Também atuou como funcionário do Fórum local. Foi ainda em jornais de Amparo que começou a publicar seus textos, em 1981, ano em que ganhou seu primeiro prêmio literário com o conto “Maré vermelha”, na cidade de Araguari-MG. Desde 1997, ministra oficinas literárias de contos em várias cidades. Assina uma coluna em que faz resenhas de livros no jornal semanário A Tribuna, de Amparo.
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O Rei condenado à morte & outras histórias, de Edmar Monteiro Filho. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 206págs., R$ 38,00, 2015. E-mail: penalux@editorapenalux.com.br
Site: www.editorapenalux.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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