Era forçoso dar prova da minha competência, antes de me oferecerem a carne fresca e o sangue latejante – não fosse eu causar o embaraço de um trabalho mal feito, e deixar os clientes entre a vida e a morte. Assim me sujeitei, de cabeça erguida, à indignidade de ser ensaiada em cadáveres que, por razões óbvias, não puderam apreciar a eficiência que me é própria.
Na sala fria do hospital de Bicêtre sonhava com um público vibrante, que me aplaudiria nas primeiras atuações ao vivo, soltando urros e gritos de pura admiração. Fui forçada a alienar-me do cenário mortiço onde me encontrava, e encarar a experiência como uma espécie de ensaio geral. No gélido recinto do hospital, apenas se podia escutar o zunido cortante da lâmina oblíqua e o baque pesado e abafado das cabeças que rolavam, como couves apodrecidas, para o fundo dos cestos pousados na laje de pedra.
Tenho alma de mulher. Gosto de me sentir bem no meu corpo e no dos outros que me visitam. Tive muitos homens…mas também mulheres. Não foi opção minha, entenda-se, mas acabou por acontecer. É algo que me ultrapassa, algo sobre o qual não tenho controlo algum, e nenhuma saída me resta senão a de me entregar por inteiro. Lamento que tivessem sido relações tão fugazes, mas a sua efemeridade foi claramente demonstrada à partida, como uma espada pairando sobre as cabeças (perdoem-me, mas não resisto a estes pequenos jogos de palavras). Eles sabem para o que vêm – não obstante os momentos de grande intensidade física e emocional, estão cientes de que, comigo, não têm futuro algum. Não fui criada para relações duradoiras e sou célebre por isso: por ser, digamos, une femme fatale, por tantas serem as vezes em que criaturas perdidas morrem a meus pés.
Afortunadamente, o nome que me foi dado coaduna-se de forma perfeita comigo – Guilhotina – sugere algo de sensível e feminino, de onde transparecem, subtis, traços do meu lado mais delicado: Guilhermina, Evangelina, Josefina… Guilhotina. O nome chegou-me através de Joseph-Ignace Guillotin, que se insurgiu contra a desigualdade de execução entre as classes. Fico aliviada por não terem decidido chamar-me José Inácio, o que seria odioso. Acabaram por dar-lhe um imenso desgosto, pois Guillotin, sendo um ilustre médico e defensor da vida, viu deste modo o nome para sempre associado à inimiga morte. Enfim, uma das muitas ironias deste mundo ingrato.
Até Guillotin me criar, morriam os nobres por decapitação – morte rápida e indolor –, enquanto os plebeus, desafortunados, padeciam na roda, na forca – após terem sido torturados –ou na ponta de uma espada. Como se não bastasse viverem uma vida desgraçada, morriam desgraçadamente. E a Revolução gritava:
“Liberdade!”, “Igualdade!”, “Fraternidade!”
(excerto do conto “Língua afiada”, in «Coisandês, a vida nas coisas, págs.29-31, Verbo, 2014, Prémio Revelação APE/Babel)