Uma viagem à Índia – 3

As representações como ponte para a memória individual e coletiva

                Seguindo Theroux, o que distingue um romancista de um escritor de viagens é que “um romancista é treinado para lembrar, para acordar a memória, e, memória é, nessa perspetiva, imaginação. Um romancista sabe escrever um diálogo, descrever uma paisagem, a fisionomia de alguém. O que distingue um novelista de um escritor de viagens é a memória, fazer o leitor ver, ouvir, cheirar, no seguimento de Joseph Conrad, que nos seus livros sobre o Congo queria que as pessoas vissem, e essa autodefinia o autor como a sua missão.”

Representações do mundo

                Apesar de “[…]os homens se corresponde[re]m, entre o Ocidente e o Oriente, com cartas ininterruptas; falam a mesma língua antiga, a de qualquer predador.” (Canto X, 50), e ainda, ” Do início da Europa ao fim do mundo o mundo é igual: ambíguo como tudo o que noja e atrai.” (Canto ). Esta posição básica do homem é a única forma de entender prática e teoricamente o que distingue moralmente os homens. As pertenças nacionais não o fariam certamente, como bom apanágio do homem cosmopolita. Contudo, há diferenças, “Porque há países onde as paixões se desenvolvem mais (produtos mais adequados ao tipo de solo e humidade [existentes], outros onde se chega para enriquecer. Em raros países se entra para aperfeiçoar a alma.” (Canto,). Supostamente na Índia far-se-o-á, mas eis a constatação que “Este país [Índia] é igual aos outros: belo e bruto.”.

Representação de Portugal

“O vento (de certos países) maltrata a cabeça de quem acabou de cair e massaja os pezinhos de quem está no topo.” (Canto I, 16)

O que importa, caro amigo parisiense, é localizar-me. Não sou o sitio onde estou agora, isso é claro.

(Canto III, 19)

“Chego, pois, ou a minha voz em meu nome, chego, dizia, finalmente, ao sítio de onde parti: Portugal, Lisboa, Rua Actor Isidoro, n.º 31, 1º direito. É um bairro simpático, com uma mercearia em casa esquina. Mesmo estando no centro da cidade, barulhenta e com fumos de carros, se tens laranjas e maçãs na tua rua então estás praticamente no campo.” (ibidem, 20)

 “Ausência de indústria e de fábricas significativas, eis a higiene de um país como o nosso.” (ibidem, 21)

“Colectivamente os homens amam-se, ou seja: negoceiam. Individualmente, sim, surgem os piores dissabores. Muitos homens na família vi eu humilharem-se – disse Bloom – apenas por uma côdea de dólares; a realidade é uma coisa que pode ser comprada.” (ibidem, 39)

“É evidente que o meu pai teve muitos adversários, mas nesse tempo os inimigos eram quase artesanais; tinham a tentação de se juntarem todos no mesmo sítio para que a bomba que caísse sobre eles não privilegiasse ninguém.” (44)

“O meu pai, John Bloom, era um homem de fé. E madrugador.” (45)

“O meu pai lutou então pela herança com um sistema complexo que misturava balística e crença religiosa.” (46)

“A minha família, como vê, é dura – disse Bloom ao parisiense que continuava a escutá-lo – mas, além de espancar pessoas com alguma regularidade, também pinta quadros. Nesses três dias após a rixa – continuou – o meu pai, John Bloom, pintou um quadro abstracto que misturava falhas de consistência com falta de habilidade técnica, mas o certo é que essa tela teve grande êxito numa das galerias da cidade. O importante, no fundo, é o simbolismo das coisas, e, claro, o dinheiro. O certo é que o meu pai ganhou a batalha legal – os advogados dele eram tão perfeitos que pareciam ter sido feitos à mão.” (55)

“Todos os terrenos e prédios que tinham pertencido aos meus avós passaram assim para o meu pai. Poderá sofrer críticas, mas o materialismo é, no fundo, aquilo que nos alimenta. Sem ele, o nada ocuparia o espaço todo.”

“Os Bloom são gente que por tradição avança: ligeiramente diabólicos, portanto.”

“Só não foge das grandes tragédias aquele a quem antes de fugir lhe foge a vida, escreveu Camões no séc. XVI. O meu pai, John, observaria ainda que um Bloom só não avança se antes, sobre ele, tiver avançado a morte.” (82)

“É como se a família Bloom tivesse sido empurrada para a frente e esse impulso inicial ainda não se tivesse esgotado. Sou filho desse primeiro impulso. E de tal me orgulho.”(83)

“As várias gerações são egoístas, sem dúvida. Porque se os dias emperrassem numa geração específica – como roldana sem óleo que não avança -, estaríamos diante de uma magnífica raça eterna. O que muito faria contentes uns e incomodaria outros: aqueles que ainda não nasceram.” (84)

O simbolismo dos eventos da história de John Bloom recontados pelo filho aludem à história da transição de Portugal para a democracia, e misturam-se lindamente com o efabulado.

 

Representação da Europa

                “Venho da Europa, sou europeu e português. Quando levanto os olhos para o céu levo comigo o que recordo da História. Os pulhas e os santos, transporto-os todos comigo na memória. Uma casa antiga cheira pior, cai com mais facilidade – mas tem livros mais valiosos. Eu venho da velha Europa e nela tenho orgulho: ainda tem futuro, nem tudo nela está já visível.” (Canto VIII, 71)

                “No Inverno ou no Verão, na Europa sofre-se mais no corpo que no espírito. E neste particular o século XXI nada mudou. O continente em espírito afunda-se, é certo, mas ainda tem montanhas. Afunda-se, é certo, mas ainda tem helicópteros. Afunda-se mas ainda se consegue colocar em bicos de pés e ainda existem pelo menos dez pessoas vivas que merecem ser ouvidas. Na Europa, na velha Europa, ainda há cabeças imprevisíveis.” (Canto VIII, 73)

Susana Leite

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