Resumo: Este trabalho procura resgatar os nove anos da administração de D. Bernardo José Maria de Lorena e Silveira à frente da capitania de São Paulo (1788-1797), período em que o governador procurou consolidar a economia, incrementando a agricultura, além de abrir caminhos para a circulação da produção de gêneros, especialmente do açúcar, de que a chamada Calçada do Lorena, ao pé da Serra do Mar, em Cubatão, hoje em ruínas, é ainda o melhor exemplo. O governo Lorena, além de atuar em defesa e manutenção dos territórios meridionais e das fronteiras estabelecidas pelo Tratado de El Pardo, de 1761, apesar das poucas forças de que dispunha, destacou-se pela maneira harmoniosa com que procurou desempenhar sua administração, ganhando por isso o apoio das elites da capitania.
Palavras-chave: Brasil – século XVIII – capitania de São Paulo
1. Introdução
Este trabalho pretende analisar os nove anos do governo Lorena (1788-1797), mostrando a atuação do governador para conciliar os interesses da Metrópole com as reivindicações das lideranças locais que, não raro, viam com reservas os representantes da Coroa. É de lembrar que Lorena recebeu uma capitania mais organizada do que os seus antecessores e soube, sobretudo, aproveitar-se disso para colocá-la numa situação mais favorável em relação às demais da América portuguesa. Em pouco tempo, a capitania paulista ganhou maior importância política e econômica, como prova o papel de destaque que teve na gestação do processo que resultou na separação da colônia do Reino.
É de ressaltar que o período anterior sempre foi apontado por contemporâneos e historiadores mais antigos como de extrema miséria e de obscurantismo na história da América portuguesa, que coincide com a perda de sua autonomia em 1748, depois de ter alcançado uma situação destaque, à época da capitania vicentina, como centro propulsor da penetração para o interior de América, o que se deu a partir da descoberta das minas de ouro. Este trabalho contesta e relativiza essa visão, mostrando que essa ideia, provavelmente, fazia parte de uma estratégia política das elites contemporâneas para reivindicar melhorias, pois esse quadro não se justifica totalmente.
2. São Paulo, um entroncamento de vias
Ao contrário do que a historiografia tradicional sempre defendeu, a capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de uma economia de subsistência, à época da chegada do governador D. Luís Antônio de Sousa Botelho, o morgado de Mateus, em 1765, quando deixou de ficar adjudicada à capitania do Rio de Janeiro. Esse período que se iniciara em 1748 sempre foi visto por historiadores mais antigos, como Roberto Simonsen (1889-1948) e Caio Prado Júnior (1907-1990), como de completa decadência e isolamento em relação às demais regiões da América portuguesa, em comparação com as capitanias do Nordeste e da zona de mineração, que apresentavam padrões de crescimento superiores.
Hoje, esse conceito tem sido revisto ou relativizado, ao reconhecer-se que, se São Paulo não dispunha de uma economia pautada na grande lavoura monocultura e escravista nem na extração mineral, teve participação decisiva no avanço em direção ao Oeste e à descoberta das minas de ouro ao final do século XVII (MENDES, 2004, p. 2), além de, geograficamente, localizar-se no entroncamento de importantes circuitos regionais, terrestres e fluviais (MOURA, 2006, p. 42). E que esse fator continuou a pesar decisivamente no rumo do desenvolvimento da capitania.
Também não se pode admitir que a capitania, entre os anos de 1765 e 1822, tenha passado por enfraquecimento político ou decadência econômica, já que, no período, além de aumento demográfico, a capital continuou a atuar como peça-chave das principais vias, fluviais e terrestres, mercantis e de comunicação, o que sempre tendeu a fortalecer o circuito vicinal de comércio, ou seja, a economia de abastecimento local (MOURA, 2006, p. 43).
A economia da capitania de São Paulo sempre esteve baseada na comercialização dos produtos, servindo como entreposto de cargas. Até porque a lavoura praticada na região era feita em pequenas propriedades, sem larga escala, voltada mais para o abastecimento local e não para a exportação. A mão de obra escrava majoritária tampouco vinha da África, mas do elemento local, ou seja, o indígena capturado nos sertões. Enquanto as demais capitanias localizadas à beira do Oceano Atlântico concentravam seu interesse no tráfico marítimo com Portugal, especialmente para a venda da produção canavieira, os moradores do Planalto de Piratininga estavam preocupados com o sertão inexplorado e as riquezas que poderiam encontrar.
Por isso, quando o governador Lorena chegou para exercer o seu primeiro triênio, não encontrou uma capitania depauperada ou isolada, mas em desenvolvimento. E tratou de dar continuidade a uma política de fortalecimento de sua economia, procurando, na medida do possível, encetar uma série de obras de melhoramento dos caminhos do interior em direção à capital e, principalmente, ao litoral, pois os produtores agrícolas só se sentiriam estimulados a produzir mais se pudessem escoar a sua produção para outras capitanias e para o Reino.
3. Duas medidas fundamentais
Foi o que o levou a tomar duas medidas que são fundamentais e aparecem como a marca de seu governo. Uma delas foi a proibição de que embarcações saíssem dos demais portos da capitania (São Sebastião, Ubatuba, Cananeia e Paranaguá) em direitura ao Rio de Janeiro, sem fazer escala em Santos, onde deveriam pagar dízimas à Alfândega. Se assim não o fizessem, continuariam a pagar dízimas na Alfândega do Rio de Janeiro, com sensíveis prejuízos à arrecadação da capitania de São Paulo.
Embora tenha causado muitos protestos por parte dos produtores e comerciantes de outros portos, a medida foi fundamental para canalizar a produção de açúcar e outros gêneros para o porto de Santos, que, a partir de seu governo, passou a comercializar diretamente com a Europa, ou seja, com Portugal. Ao partir do princípio de que governar é estabelecer prioridades, Lorena tomou uma decisão que seria fundamental para abrir literalmente o caminho para o desenvolvimento da capitania, determinando que toda carga produzida na capitania teria de passar primeiro pelo porto de Santos. A medida permitiu que o porto de Santos passasse a receber mais navios e a fazer o comércio diretamente com Portugal. Mais: a partir daí, as embarcações passaram a vir a Santos porque seus armadores entendiam que não retornariam mais vazias ou com meia carga.
Obviamente, isso causou descontentamento entre os grupos prejudicados: intermediários do Rio de Janeiro que atravessavam os negócios dos paulistas, produtores que costumavam escoar a produção por outros portos da capitania e até o vice-rei, que viu a arrecadação da Alfândega fluminense cair. Em compensação, as rendas da Alfândega santista aumentaram sobremaneira porque antes os produtos tinham de passar pelo Rio de Janeiro e lá é que pagavam as taxas.
Ao priorizar o caminho para o porto de Santos, em detrimento dos demais povoados de marinha, Lorena levou basicamente em conta a proximidade daquela vila à capital, ainda que a Serra do Mar se afigurasse como uma região praticamente impenetrável, tantos eram os obstáculos que se apresentavam. Mas, da mesma forma, esses obstáculos se colocariam, se tivesse optado por São Sebastião, Ubatuba, Cananeia ou Paranaguá, vilas mais distantes da cidade de São Paulo.
Por outro lado, na capital e mesmo na vila de Santos, com certeza, Lorena sabia que contaria com maior apoio financeiro e político para os seus planos de expansão, em função dos interesses econômicos de produtores e comerciantes. Ao mesmo tempo, atenderia aos interesses dos donos de engenho do interior da capitania, que defendiam o escoamento da produção pelo porto santista. Mas encontrou também oposição na Câmara de São Paulo, já que alguns comerciantes da capital não tinham interesse em que a vila de Santos viesse a assumir uma posição de liderança na capitania.
4. Uma briga de interesses
Essa briga de interesses vinha de longe. É de lembrar que a família Andrada, à frente de outros negociantes da vila de Santos, tentou em 1768, à época do governo do morgado de Mateus, autorização para instalar uma casa que controlasse o comércio atacadista da capitania com o Reino e outros portos da América portuguesa (MOURA, 2006, p. 48). Essa teria sido a primeira iniciativa de um grupo de comerciantes no sentido de estabelecer uma casa que funcionasse como intermediária, comprando os gêneros produzidos na capitania para revendê-los aos negociantes do Reino, que, por sua vez, distribuíam-nos para os demais portos da Europa e até da Ásia.
A ideia, porém, não foi adiante porque muitos produtores estavam acostumados a passar as suas mercadorias diretamente para o Rio de Janeiro e outros funcionavam como “caixeiros” desses negociantes fluminenses. Houve, portanto, também reação por parte de forças que controlavam a Câmara de São Paulo, pois não queriam perder o controle que exerciam sobre os circuitos regionais. E assim a sugestão foi bombardeada sob a alegação de que não havia gêneros no porto de Santos suficientes para satisfazer a necessidade de consumo dos moradores da cidade de São Paulo e revenda ao mercado externo (Atas da Câmara, v. XV, 1768, p. 339-340).
Esse receio de que o controle do mercado inter-regional caísse nas mãos de comerciantes santistas reflete-se na morosidade e má vontade com que a Câmara de São Paulo trataria nos anos seguintes as obras de construção e manutenção dos caminhos em direção ao mar. Só quando esse equilíbrio de forças foi rompido com a presença de um representante do Reino a favor da melhoria desses caminhos é que isso se tornou possível.
Para tanto, foi fundamental a maneira como o governador capitalizou o apoio de vários grandes comerciantes para a execução dos planos que trazia da Corte, especialmente José Arouche de Toledo Rendon, José Vaz de Carvalho, Francisco José de Sampaio Peixoto, Salvador Nardi de Vasconcelos Noronha e Antônio José Vaz, camaristas e importantes negociantes e produtores locais que, a 17 de dezembro de 1791, participaram de uma academia na Câmara de São Paulo em homenagem ao governador, que então já levava quase três anos e meio à frente da capitania.
Lorena chegou do Reino com a mesma ideia do grupo liderado pela família Andrada em 1768. Só que, em vez de uma casa comercial estabelecida por comerciantes santistas, quem funcionaria como atravessador dos negócios e fomentador de crédito aos produtores e comerciantes de menor expressão seria um preposto indicado diretamente por Jacinto Fernandes Bandeira, o grande negociante de Lisboa. Obviamente, as forças que dominavam a Câmara não se opuseram de maneira tenaz como antes: uma coisa seria solapar a iniciativa de concorrentes locais, outra seria contrariar os interesses do representante régio na capitania.
Assim, contando com o apoio da elite dirigente da capital, o governador tratou de melhorar os caminhos da Serra de Cubatão em direção a Santos, determinando a construção da primeira via pavimentada da América, a hoje chamada Calçada do Lorena, além de mandar fazer um aterrado que permitiu a passagem com mais desenvoltura das cargas que vinham em lombo de muares e até em carroças.
Naturalmente, alguns grupos enriqueceram com a medida imposta a ferro e fogo por Lorena, em prejuízo de outros, que passaram a considerar a proibição um monopólio – o que, de fato, era –, mas, afinal de contas, a produção paulista, especialmente a de açúcar, que vinha de Itu, Porto Feliz, Mogi Mirim, Sorocaba, Guaratinguetá, Lorena, Jundiaí e São Carlos, começou a crescer de maneira vertiginosa. Esse crescimento da lavoura de cana de açúcar, especialmente naquelas vilas, pode ser constatado em números, com a multiplicação de engenhos: de um total de 78 que havia em 1793, chegou-se a 359 em 1798 (AHU, CU, São Paulo, caixa 14, doc. 698, post.1798).
5. O apoio das elites escravocratas
Se não bastasse isso para valorizar a administração de Lorena à frente da capitania de São Paulo, da consulta à documentação de arquivo ressalta que nenhum outro capitão-general e governador deixou o governo tão elogiado quanto D. Bernardo, ao menos pelas elites escravocratas da cidade de São Paulo e da vila de Santos, representadas pelas câmaras, que, obviamente, reuniam muitos produtores e comerciantes que haviam obtido altos lucros com a chamada “lei do porto único”.
Em muitos documentos escritos após a sua saída para o governo de Minas Gerais, é possível encontrar vários elogios a sua forma de governar. Em julho de 1797, por exemplo, a Câmara de São Paulo fez questão de louvaminhar Lorena por ter escolhido para ajudante de ordens José Joaquim da Costa Gavião, em substituição ao conhecido José Romão Jeunot. Gavião viera do Regimento de Moura, no Alentejo, em Portugal, e àquele tempo ocupava o posto de capitão de cavalaria dos Voluntários Reais, além de já estar estabelecido e casado em São Paulo:
“A experiência mostra que um bom ajudante de ordens influi muito na felicidade de um bom governo: agora o acabamos de ver em o feliz governo do general Bernardo José de Lorena, que Vossa Majestade foi servida de promover para Minas Gerais” (DI, v. 89, 1967, p. 104, 29/7/1797).
Contra Lorena, como se observou, levantaram-se as demais câmaras das vilas à beira-mar que se sentiram prejudicadas pela determinação que obrigava os produtores locais a enviar seus gêneros para o porto de Santos. Pouco mais de seis meses depois da saída de D. Bernardo, a Câmara de São Sebastião encaminhou representação à rainha queixando-se da “opressão e vexame em que os moradores daquela vila se achavam desde 1791, quando foram intimados por ordem do governador mandando suprimir a liberdade de levarem os seus efeitos a qualquer porto do Estado do Brasil, onde melhor pudessem reputar; e isto com pena de prisão” (DI, v. 89, 1967, p. 105, 3/2/1798).
Da correspondência, percebe-se que, de início, por recomendação da Corte, o substituto de Lorena, Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, manteve a proibição, que, segundo a Câmara de São Sebastião, favorecia os monopolistas de Santos “que pagam menos que os do Rio de Janeiro”. Para os camaristas, Mendonça teria acreditado nas “antigas e novas falarias dos mesmos (monopolistas)”.
Os pró-homens de São Sebastião ainda acusaram o juiz de fora da vila de Santos, Sebastião Luís Tinoco da Silva, a essa altura já transferido para a cidade de São Paulo, de ter sido “bem instruído nos dolosos subterfúgios dos ditos monopolistas com quem vive”. E justificaram o silêncio em que se haviam mantido durante o governo de Lorena porque temiam represálias. “Por isso, fomos tolerando a opressão na esperança de que o futuro sucessor talvez quebrasse o pesado grilhão”, justificaram-se (DI, v. 89, 1967, p. 107, 3/2/1798).
À época em que escreveram essa representação à rainha, porém, o governador Mendonça já havia mudado de opinião. Tanto que, em correspondência datada de quatro dias depois daquela representação, Mendonça já avisava ao capitão-mor de São Sebastião, Cândido Xavier de Almeida e Souza, que havia derrubado a determinação que privilegiava o porto de Santos, concedendo licença para aquele porto e para o de Ubatuba “de enviarem dos seus efeitos para qualquer porto da nossa América a terça parte dos açúcares e aguardentes que haviam feito entrar na vila de Santos” (DI, v. 87, 1963, p. 68, 7/2/1798).
A partir de então, Mendonça seria um contumaz crítico das medidas tomadas por seu antecessor: ao final de seu governo, ao escrever uma “memória” dirigida ao seu sucessor, Antônio José da Franca e Horta, acusou Lorena de ter tomado a medida de definir a vila de Santos como porto único “por seu próprio interesse”. Uma acusação que, embora as evidências possam induzir que tivesse razão, partia de um governador que se tornara conhecido como notório atravessador dos negócios coloniais, tantas foram as queixas de comerciantes que chegaram à Corte.
Na “memória”, porém, ao mesmo tempo, Mendonça deixou implícito um elogio à medida tomada por seu sucessor, ao admitir que a sua revogação “reduzira o comércio à fraqueza em que V. Exa. (o governador Franca e Horta) vem o achar”, ainda que, a partir dali, cada um voltasse a ser “livre para transportar os gêneros que têm para onde mais conta lhe faz”. Para justificar a derrubada daquele sistema que obrigava “os povos de São Sebastião e Ubatuba a conduzirem a Santos os seus efeitos para ali serem comprados pelos preços que queriam as pessoas encarregadas de sua compra”, Mendonça argumentou que aquele monopólio trazia “insanável prejuízo aos agricultores que, desanimados com semelhantes procedimentos, abandonaram aquela ocupação, donde resultou a decadência das mencionadas vilas” (DI, v. 44, 1915, p. 129, 28/12/1802).
Num excesso de autocrítica, o governador reconheceu que a revogação da medida tomada por Lorena não aumentara o comércio direto com a metrópole, observando que “os gêneros que haviam de formar a carga dos poucos navios que em direitura se dirigiam à Corte formaram a dos muitos vasos pequenos que anualmente navegam desta capitania para todas as da América, além de dois ou três que constantemente têm ido em direitura ao referido porto de Lisboa” (DI, v. 44, 1915, p. 131, 28/12/1802). Depois, ressaltou que, com a saída dos gêneros da capitania, animou-se a agricultura, observando que “os compradores enviaram (os gêneros) para onde os convidou a boa venda que tiveram em referidos portos”.
Ao contrariar ordem do Reino para seguir os ditames de seu antecessor, Mendonça justificou-se alegando que só fizera a mudança depois de muito estudo e “fundado em sólidas razões” (DI, v. 29, 1899, p. 130-134). Mas, na verdade, a sua decisão iria ao encontro da orientação de D. Maria I que, em razão das tensões vividas na Europa entre França e Inglaterra, ordenara que os “vasos pequenos” das demais vilas de marinha da América portuguesa não se dirigissem em direitura a Lisboa, mas antes passassem por portos mais importantes, como o Rio de Janeiro, no Atlântico Sul, seguindo até a Bahia, fazendo o transbordo para embarcações mais seguras, o que, de certa forma, também reforçava a antiga medida adotada por Lorena (DI, v. 39, 1902, p. 145). Como se sabe, dali as embarcações seguiriam para o Reino protegidas por naus de guerra.
A decisão de derrubar a prática exclusiva atribuída ao porto de Santos talvez resultasse de cooptação do governador e capitão-general por produtores das vilas litorâneas da capitania – São Sebastião, Ubatuba, Cananeia e Paranaguá – e de negociantes cariocas, que, de fato, haviam sido prejudicados pelas restrições impostas ao tempo de Lorena (MATTOS, 2009, p. 135-136).
Mas para Mendonça, a navegação do porto de Santos para o de Lisboa haveria de ser sempre diminuta, enquanto as culturas de café e de algodão não chegassem ao seu auge, “pois que estes gêneros são os que oferecem mais carga que, por ser especificamente mais cara, é mais apropriada para os altos das embarcações” (DI, v. 44, 1915, p. 131-132, 28/12/1802).
6. Lei do porto único
Ao se referir à “curtíssima” instrução que seu antecessor lhe deixara, Mendonça contestou a informação de que, a partir da “lei do porto único”, a capitania passara a fornecer carga suficiente para abastecer doze navios por ano rumo a Lisboa. “Ele mesmo (Lorena) se convenceria do pouco fundamento desta assertiva, se ali declarasse o total dos gêneros que podiam ser transportados para aquela capital”, argumentou.
Depois de se referir novamente à decadência em que se encontravam as vilas de São Sebastião e Ubatuba ao tempo de sua chegada a São Paulo – “com a maior parte de seus engenhos demolida” –, Mendonça lembrou que, àquela época, as vilas de Serra-acima, “situadas na estrada que conduz desta capital para o Rio de Janeiro”, haviam produzido apenas 83.435 arrobas de açúcar. “Foram as (arrobas) que desceram no primeiro ano de meu governo, que foi o de 1797, e passaram pelo Cubatão”, disse (DI, V. 44, 1915, p. 137, 28/12/1802).
Ao final de 1802, segundo Mendonça, a capitania já estava produzindo 200 mil arrobas de açúcar por ano, que, ainda assim, não seriam suficientes para suprir dez embarcações com 500 caixas de 40 arrobas. “Ainda que suprido todo este açúcar em Santos, sempre vem a faltar carga para os altos (das embarcações)”, disse, observando que nunca a capitania tivera produção suficiente para suprir sequer dez embarcações por ano. “Nem a pode ter senão daqui a meia dúzia de anos”, previu (DI, v. 44, 1915, p. 138, 28/12/1802).
Apesar de todas as dificuldades que enumerava, Mendonça, em sua exposição, fez questão de manifestar a Franca e Horta que ele viria para governar uma capitania que era, “sem dúvida, a melhor da América, pela sua situação local e pelo concurso de circunstâncias que foram a sua total independência das outras”. Segundo o governador que estava de saída, a capitania produzia tudo quanto era necessário para a sustentação de seus habitantes e para o comércio, além de ter a vantagem de oferecer gêneros de que têm absolutamente necessidade as capitanias adjacentes, “como são os animais que daqui saem e por aqui transitam, tanto vacum para o Rio de Janeiro como muares para a mesma capitania e para as de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso” (DI, v. 44, 1915, p. 138, 28/12/1802).
Como se sabe, esse comércio intercapitanias de tropas de muares impulsionado pela expansão da lavoura açucareira em São Paulo e no Rio de Janeiro, favorecida pela conjuntura internacional, havia também contribuído sobremaneira para dinamizar a economia paulista, tendo a feira de Sorocaba funcionado como mola propulsora a partir da década de 1770. “Deste modo, os comerciantes de Minas Gerais, Rio de Janeiro e vilas paulistas já não tinham necessidade de se deslocar até o continente de São Pedro para adquirir os animais. Bastava, desde então, deslocar-se para a feira” (BACELAR, 2001, p. 32).
7. A importância da Calçada do Lorena
Ainda incomodado com a boa fama que cercava o seu antecessor, ao final de sua exposição a Franca e Horta, Mendonça, ao reconhecer implicitamente a importância da construção da estrada pavimentada que Lorena mandara fazer ao tempo de seu governo, procuraria minimizar a obra, dizendo que “para nada serviria” se ele não tivesse consertado o resto do caminho. Graças aos serviços que mandara executar – comandados pelo sargento-mor engenheiro João da Costa Ferreira (DI, v. 87, 1963, p. 6, 13/7/1797) –, garantiu Mendonça, a estrada por terra de Cubatão a Santos, “além de oferecer um meio de tornar legal o direito de passagem”, abria a possibilidade de se transportar a cavalo os gêneros de Serra-acima até o porto, “evitando-se por este modo a ruína que sofre o açúcar no transporte por água” (DI, v. 44, 1915, p. 145, 28/12/1802).
A par das divergências entre as exposições dos governadores, ditadas quase sempre pela vaidade de cada um, a verdade é que a segunda metade do século XVIII foi decisiva para o crescimento que a capitania de São Paulo apresentaria já no século seguinte, o que a levaria a cumprir papel fundamental nas circunstâncias que conduziram à separação do Brasil de Portugal, em razão de sua importância geopolítica e econômica.
Uma representação encaminhada pelo comerciante Diogo de Toledo Lara Ordonhes, de Lisboa, ao final da década de 1790, ao ministro dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, traça um panorama isento desse período, até porque o seu autor não teria nenhum vínculo político ou comercial com governadores e capitães-generais. Segundo Lara Ordonhes, na década de 1750, das capitanias do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão só se exportavam para Portugal os dois mais “consideráveis efeitos” do Brasil, o açúcar e o tabaco de rolo, “ainda que este último veio a se limitar ao Recôncavo da Bahia”. Naquele tempo, segundo o comerciante, a capitania de São Paulo não dava para o comércio com a Europa (isto é, com Portugal) “uma só arroba de açúcar nem outro efeito algum” (DI, v. 89, 1967, p. 142-143).
De acordo com Lara Ordonhes, a vila de Santos, principal porto da capitania, “tendo sido antigamente muito comerciante”, achava-se então na última decadência, mas começou a se revitalizar depois com a fabricação de anil e de maior quantidade de açúcar, que eram conduzidos para o porto do Rio de Janeiro por conta de comerciantes cariocas que se encarregavam de reenviar os produtos para Portugal. “No tempo de Francisco da Cunha Meneses (1782-1786), promoveu-se a agricultura e principiaram a carregar no dito porto de Santos alguns navios que saíam em direitura para Lisboa”, disse, observando que, apesar disso, sempre existiu a liberdade de se transportar os gêneros para o Rio de Janeiro, “no que não houve alteração no governo de Chichorro (1786-1788)”. Depois, acrescentou:
Lorena (1788-1797) não só promoveu altamente a agricultura e animou a indústria dos paulistas, mas também proibiu a exportação de todos os gêneros de embarque para outra qualquer parte da capitania, para deste modo facilitar-se o comércio direto com Portugal, o que conseguiu com grande benefício dos povos que regia, pois presentemente podem carregar em cada ano no porto de Santos para Portugal 12 navios de açúcar da melhor qualidade e de outros gêneros (DI, v. 89, 1967, p. 143).
Segundo Lara Ordonhes, como antes desta proibição o açúcar fabricado na capitania de São Paulo se confundia com o do Rio de Janeiro, passava todo ele debaixo deste nome, conservando na praça de Lisboa a mesma reputação, que tinha adquirido o do Rio de Janeiro pela autoridade da Mesa de Inspeção. “Depois que entrou a ser conhecido nesta praça de Lisboa o açúcar paulistano pelo nome de açúcar de Santos, decaiu muito a (sua) reputação e por consequência o preço”, disse, explicando que, embora muitas caixas viessem com o título de branco fino ou de branco redondo, havia nelas açúcar misturado e baixo, além dos chamados mascavos.
Para o comerciante, essa alteração se devia atribuir em parte à ignorância e aos descuidos dos fabricantes e em parte à malícia e má-fé dos mesmos produtores, sem deixar de levar em conta que “algumas causas físicas do terreno em que eram plantadas as canas influíam muito na mesma bondade do açúcar comprado de outras capitanias que ficam ao Norte”.
Como essa representação lhe foi encaminhada pelo ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho anexa à carta de 27 de março de 1799, Mendonça, com certeza, só tomou conhecimento de seu teor depois que já havia derrubado a proibição de Lorena, não lhe restando alternativa que não fosse a de justificar sua decisão. Embora tenha reconhecido que o açúcar produzido na capitania gozava de “má fama por causa das alterações que sofria”, só, ao final de 1802, ao deixar o governo, é que iria defender a instalação de uma Mesa de Inspeção em São Paulo para certificar a sua boa qualidade, tarefa que deixava para o seu sucessor (DI, v. 44, 1915, p. 139, 28/12/1802). Ao que parece, os elogios feitos pelo comerciante lisboeta a Lorena influenciaram o ânimo de Mendonça, pois, a partir de então, ele tratou de menosprezar sempre que pôde os méritos e feitos de seu antecessor.
Que havia na decisão de Mendonça de derrubar o monopólio da vila de Santos mais despeito do que análise fria dos fatos conclui-se ao se constatar que, em 1804, o governador Franca e Horta haveria de propor ao ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho a retomada da exclusividade de comércio direto entre o porto santista e o de Lisboa, ainda que a decisão voltasse a desagradar aos produtores e comerciantes ligados ao comércio com o Rio de Janeiro (DI, v. 94, 1990, p. 17-19).
De fato, proposta aceita, Franca e Horta seria alvo das mesmas acusações que haviam sido feitas a Lorena, como se vê em queixa encaminhada em fevereiro de 1805 ao príncipe regente pelo pároco João Rodrigues Coelho, de São Sebastião, para quem o governador abusava do despotismo, praticando violências e opressão, ao proibir que as vilas de marinha comercializassem com outras capitanias e até mesmo entre si.
Segundo o pároco, os habitantes das vilas litorâneas eram obrigados a enviar seus gêneros a Santos, onde três monopolistas controlavam o comércio, pagando preços diminutos. De acordo com Coelho, o governador e capitão-general perseguia e mandava prender quem ousasse desafiar suas ordens, mas favoreceria contrabandistas que enviavam para “as Américas espanholas” escravos, açúcar, aguardente e outros produtos sem pagar os direitos reais. Esses contrabandistas seriam o capitão-mor Manoel Lopes da Ressurreição e os capitães João José da Silva e Julião de Moura Negrão, com os quais o governador teria “contraído amizade” (AHU, CU, caixa 57, doc. 4.300, 7/2/1805).
A decisão de Franca e Horta, no entanto, não iria durar muito, pois a 6 de outubro de 1806 o príncipe regente mandou que tudo voltasse ao estado anterior (AHU, CU, caixa 58, doc. 4371). O governador ainda insistiu em manter a concentração das cargas num só porto como única medida possível para fomentar a circulação de mercadorias entre a capitania e o Reino (AHU, CU, caixa 30, doc. 1322, 8/6/1807), mas em julho de 1807 viu-se obrigado a liberar o comércio em todos os portos.
8. Considerações finais
Independente dos interesses particulares em jogo, é de reconhecer que, sob o governo de Lorena, a exclusividade dada ao porto de Santos redundou no fortalecimento do mercado do açúcar, o que foi fundamental para o crescimento econômico da capitania. Com a revolta dos escravos na ilha de São Domingos, no Caribe, as cotações internacionais do produto elevaram-se rapidamente, obrigando o governador a buscar uma saída para o escoamento da produção, como queriam os donos de engenho e os comerciantes. Em consequência, os engenhos começaram a se multiplicar em ritmo inédito, acelerando a aquisição de escravos para o trabalho no campo, além de atrair mão de obra de outras capitanias, o que explica um crescimento da população no período acima do que era usual (SILVA, 2009, p.159).
Basta ver que levantamento feito à época do governo Chichorro (1786-1788) apontou uma relação de habitantes de 126.145 pessoas (AHU, CU, caixa 38, doc. 3192, 2/3/1788), que chegou a 139.287 em 1789 (AHU, CU, caixa 40, doc. 3288, 31/12/1789), enquanto um mapa de 1796 registrou 155.703 habitantes, entre homens livres e escravos (AHU, CU, caixa 43, doc. 3470, c. 1796), ou seja, um crescimento de 23%em oito anos, o que indica que a evolução econômica também atraiu gente de outras capitanias e do Reino. Essa conjuntura favorável, por certo, iria estimular a procura por novas terras rumo à região Oeste da capitania, fosse pela concessão de sesmarias, fosse pela posse arbitrária, favorecendo a proliferação de arraiais e a fundação de novas vilas.
Por aqui se vê que, de fato, os nove anos de Lorena à frente da capitania de São Paulo foram decisivos para o desenvolvimento da capitania, ainda que não se possa imaginar que tivesse partido do ponto zero, pois os governos anteriores criaram as bases desse processo de crescimento e, bem ou mal, tanto Mendonça (1797-1802) quanto Franca e Horta (1802-1811) e os governos que se seguiram deram igualmente sua contribuição.
Referências
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa. Documentação referente à capitania de São Paulo em microfilmes/Projeto Resgate que consta do Arquivo do Estado de São Paulo (AESP): rolos 06.05.001/052; 06.06.053/070 (Conselho Ultramarino); 06.06.029/033 (Documentos avulsos da Capitania de São Paulo).
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The Kingdom, the Cologne and the Power: Lorenagovernmentin the captaincy ofSaoPaulo(1788-1797)
Abstract: This work seeks to rescue the nine years of the administration of D. Bernardo José Maria de Lorena e Silveira in the captaincy of Sao Paulo (1788-1797), during which the governor sought to consolidate the economy, boosting agriculture, and open pathways for the movement of production genres , especially sugar, that the call Lorena’s Causeway, at the foot of the Serra do Mar, in Cubatao, now in ruins , is still the best example .Government Lorena, besides acting in defense and maintenance of the southern territories and the borders established by the Treaty of El Pardo (1761), despite the few forces available to it, also stood out for the way they sought to play harmoniously with its administration, earning so the support of the elites of the captaincy .
Keywords: Brazil – Eighteenth century – Captaincy of Sao Paulo
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((*) Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
[1] Este texto é uma versão do capítulo final do projeto de pesquisa O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo (1788-1797), desenvolvido com bolsa da Universidade Paulista (UNIP), dentro de seu Programa Individual de Pesquisa para Docentes. Publicado na Revista Saberes Interdisciplinares, do Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves, de São João del-Rei, Minas Gerais, ano VIII, nº 15, jan.-jul./2015, pp. 17-25.
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