I
Como bem sabe o sempre atento leitor, o bildungsroman, ou romance de formação, recupera a trajetória de um herói ou anti-herói, resgatando as experiências fundamentais que acabaram por moldar a sua personalidade até a maturidade. Ou seja: traumas da infância e da juventude, desajustes familiares, frustrações amorosas, sonhos que não se concretizaram, anseios ou idealizações políticas que nunca foram cumpridas ou traídas por aqueles dotados de ideias mais práticas e menos compromissos morais, dificuldades para enfrentar a realidade – tudo isso, de certo modo, passa quem, um dia, decide que não pode mais viver à barra da saia da mãe e do bolso do pai. E vai à luta.
O termo em alemão justifica-se porque, na verdade, o gênero nasce com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, romance de Goethe (1749-1832), considerado o marco inicial do bildungsroman. Trata-se de um gênero que floresceu na Europa no século XIX e que teve outros expoentes como Balzac (1799-1850), Flaubert (1821-1880), Dostoievski (1821-1881) Marcel Proust (1871-1922), só para citar alguns.
No Brasil, não foram poucos os romances de formação. Pode-se citar O Ateneu (1888), de Raul Pompéia (1863-1895), e Meus verdes anos (1956), de José Lins do Rego (1901-1957), entre outros. Sem esquecer de Machado de Assis (1839-1908), que escreveu pelo menos três “contos de formação”: “Conto de escola”, de Várias histórias (1896), “O caso da vara”, de Páginas recolhidas (1899), e “Teoria do medalhão”, de Papéis avulsos (1882), cujos protagonistas são retratados em seu processo de crescimento e de formação.
Já “novela de formação” e ainda escrita a quatro mãos é um acontecimento raro não só na literatura de expressão portuguesa como na mundial. É o caso de Moenda de silêncios: encontros & desencantos na metrópole (São Paulo, Dobra Editorial, 2012), de Ronaldo Cagiano e Whisner Fraga, que relata os desafios que dois personagens oriundos do interior de Minas Gerais enfrentam na cidade de São Paulo em seus verdes anos. É a história de Fabiano e Murillo que, procedente um de Cataguases e outro de Ituiutaba, por coincidência (ou não) as terras de origem dos dois autores, vão tentar a vida na grande e dura metrópole, conhecem-se num pensionato e tornam-se amigos. E conservam a amizade, mesmo quando já seguiram outro rumo e cada um já descobriu a mulher de sua vida e começa a constituir a sua própria família.
II
A recuperação do tempo perdido, à la Proust, também permite uma observação do estado catatônico da literatura hoje no Brasil, refém do interesse ganancioso de editores pouco comprometidos com a boa qualidade, já que não se fazem editores como José Olympio (1902-1990) e Ênio Silveira (1925-1996). “(…) o que temos aí é um “açougue fashion” com sua burrice memorável e sua falta de vergonha, porque o que conta é o retorno financeiro, a gulodice dos editores corrompendo tudo, a dolorosa falta de espanto (ou indulgência) da mídia e da crítica para esse fenômeno”, diz Fabiano, candidato a escritor, citando o poeta Marcelo Ariel (1968). E acrescenta: “O que conta é o lucro, disse Danília em certo momento. O povo lê autoajuda, esoterismo de butique, o lixo literário americano, em prejuízo de uma formação intelectual mais sólida. Escrevem o que todo mundo quer ouvir, sem que haja necessidade de deixar qualquer rastro de reflexão, questionamento ou inquietação”.
Mais adiante, observa: “Agora está aí a febre de angelologia, runas, adivinhações, terapias disso e daquilo, padres fazendo milagres, uma disseminação de um certo tipo de literatura e de religiões de encomenda, que nascem da noite para o dia com o fito de enganar e explorar os incautos, gente procurando nelas o sedativo para seus achaques íntimos”. Enfim, eis um retrato do Brasil dos últimos trinta anos, preocupado apenas em acumular lixo cultural alienígena e importar o que não presta, como diria o poeta, professor e ensaísta Cassiano Nunes (1921-2007), igualmente citado no livro.
Para quem tivera a oportunidade numa cidade pequena e bem organizada – e no Brasil de hoje ainda existem essas cidades – de fazer viagens solitárias e escondidas à biblioteca do ginásio, onde “escalava montanhas em busca de um everest de conhecimento e descobertas”, com quem falar sobre “Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac, Fagundes Varela, José Saramago, Borges, Cortázar e Dalton Trevisan naquela cidade, pequeno deserto de memórias esquecidas, cemitérios dos vivos?” Eis o drama de Murillo, que viera de Ituiutaba, e encontra em Fabiano com quem dividir a saudade da família e as angústias diante da nova fase na vida.
III
Por aqui se vê, como bem assinalou o autor do posfácio, o escritor e jornalista Emanuel Medeiros Vieira, que este livro não é só “uma história de formação nas vísceras da metrópole”, mas também uma homenagem e uma celebração da literatura, pois os autores (e personagens), embora tenham “plena consciência do mundo massificado – áspero, deserto de utopias e de compaixão – no qual vivem, e absolutamente mercantilizado, da hegemonia, do ter, do aparecer e do triunfo do individualismo”, ainda encontram tempo para discutir suas inquietações existenciais.
Para o poeta, ficcionista e crítico literário Rubens Shirassu Jr., autor do texto das “orelhas” do livro, esta novela significa também “a procura de uma dignidade”, pois “expõe os sonhos entrecortados pelas tentativas dos rapazes de vencer a batalha numa cidade toda feita contra eles”. E, acrescente-se, um exemplo a ser seguido por esses jovens que continuam a sair do interior do Brasil em busca de dias melhores em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília, ainda que não carreguem na lembrança nenhum personagem ou verso de um daqueles autores citados por Murillo, mas um Harry Potter qualquer…
IV
Ronaldo Cagiano (1961) nasceu em Cataguases-MG, viveu de 1979 a 2007 em Brasília, onde se formou em Direito, e reside em São Paulo. Publicou Palavra engajada (1989), Colheita amarga & outras angústias (1990), Exílio (1990), Palavracesa (1994), O prazer da leitura (1997), em parceria com Jacinto Guerra, Prisma – literatura e outros temas (1997), Canção dentro da noite (1999), Espelho, espelho meu (2000),em parceria com Joilson Portocalvo, Dezembro indigesto (2001), vencedor do Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, Concerto para arranha-céus (2005), Dicionário de pequenas solidões (2006) e O sol das feridas (2011). Organizou as coletâneas Poetas mineiros em Brasília (2002), Antologia do conto brasiliense (2003) e Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo (2006). Escreve com regularidade resenhas para o Diário da Manhã e Jornal Opção, de Goiânia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense, e Hoje em Dia, de Belo Horizonte, entre outros.
Whisner Fraga (1971), engenheiro mecânico, é mineiro de Ituiutaba, e autor de Seres & sombras (1997), Coreografia dos danados (2002), A cidade devolvida (2005), As espirais de outubro (2007), Abismo poente (2009), O livro da carne (2010) e Sol entre noites (2011). Publicou poesia e ficção em diversos jornais e revistas, entre os quais Correio Braziliense, Revista Cult, Revista E, Rascunho, Revista Brazzil, Revista Literatura e Iararana. Ultimamente, vem escrevendo resenhas para o Estado de Minas e Rascunho.
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MOENDA DE SILÊNCIOS – ENCONTROS & DESENCANTOS NA METRÓPOLE, de Ronaldo Cagiano e Whisner Fraga. São Paulo: Dobra Editorial, 105 págs., R$ 30,00, 2012. Site: www.dobraeditorial.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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