Eu sei que havia um bote no mar, o mar cheio de água, a água cheia de sal, eu sei, vi

a perna baloiçar por sobre a transparência veloz do bote-barco, um semi-rígido com

muitos cavalos, era a perna e o colete, era o riso esvoaçando nas alturas impróprias da

hora em que os peixes almoçavam e queriam sossego, era isso e mais o limo no fundo

do lago, o lago de mar aberto, saindo pela fissura de um canal de areias serenas. Havia

o homem inteiro e azul e a mulher semi menina dois quatros de velha e meia pessoa era

um ser periliquitante, parecia uma folha, saída de uma primavera.

 

Mas espera, não era bem assim, era um tipo e uma miúda, calhou definirem a mesma

ilha para se encontrarem, calhou dessa maneira pela razão coincidente de amarem

com o mesmo ouvido, a força das ondas batendo no seu coração. Quase assim,

estavam mais por ali sentados, cada um na sua ponta de areia, um com headphones a

outra mergulhada numa revista, cada um com o seu silêncio fermentado de barulhos

sonolentos, assim veio o skipper, assim ofereceu boleia, que venham dizia ele,

que venham conhecer o outro lado da ilha, tem muitas terras, muita natureza, tem

pescadores buscando peixe com o anzol, tem cabanas de caniço com TV a cores,

venham, mostro-vos como as nossas mulheres organizam os filhos na beira do lago, e

como o mar, o mar, canta músicas que batucam no centro de uma pessoa para nunca

mais sair. Extasiados, levantaram-se e seguiram o senhor do bote, um meio barco

valente que enfrentava o morno do sol sem calamidades, vestiram os coletes que não

salvam a vida de ninguém, nem protegem o coração de arder pela magia de um bruxo

simpático, ele aguentou-se de pé expectante, ela mais matéria de água, montou o bote

como quem monta um cavalo marinho, sorriu, a cabeça enrolada numa onda de alívios

insuspeitos. O pássaro súbito, cortou a nuvem e mergulhou no pé da moça, beijou um

limo verde, falhou de apanhar um peixe, a moça, tocou-lhe com uma asa, mal abriu de

regresso ao espaço.

 

Há coisas, que molham a alma, levam um homem a virar uma lavadeira, segurar o seu

coração pela gola, batê-lo na pedra do rio e espremê-lo. É preciso um homem ter um

cão que lhe guarde, garanta ao coração que pode ganir, se cair molhar no bico de um

pássaro, se cair molhar nos pés de uma mulher. Pudessem os cães cheirar anjos de prata,

pudessem luas enfeitiçar-se de lobos morenos, pudesse um homem ter, o coração de um

samurai.

Foi isso, o que aconteceu. Ela cimentou o homem por causa do pássaro.

 

Vanessa de Oliveira Godinho

Vanessa Godinho

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