1914: “a última de todas as guerras”
II
Após a Grande Guerra impunha-se o esquecimento para os sobreviventes, os filhos (órfãos ou não), as mulheres (viúvas ou não) poderem viver, para as cidades, a economia e toda a Nação poderem reconstruir-se. A região de combate fora arrasada, a catedral de Reims demolida, as minas e indústrias aniquiladas, os campos transformados em cemitérios (explosivos) e, em cada família, um pai, um filho (no mínimo), um irmão, um noivo, um marido morrera ou voltara estropiado. “Quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram, quantas noivas ficaram por casar”: para em 39 a guerra voltar.
Os sobreviventes válidos (ou com aparência disso) da “última de todas as guerras” foram de novo mobilizados para combater – outra vez – os alemães; alguns passaram cinco anos em campos na Alemanha. Entretanto o exército alemão invadira e ocupara a França… Mais uma vez. Esta Segunda Guerra empurrou a barbárie para extremos que ocultaram a carnificina da Primeira; e, de então para cá, exaltou-se a figura do resistente. Ao ponto de alguns franceses inquirirem com ironia:
– O que há para ver na televisão portuguesa?…
Em França viam-se filmes, séries, documentários sobre a Segunda Guerra Mundial. Os bons resistentes e os alemães perversos. Os colaboradores. Os vira-casacas. O racionamento. O mercado negro. Os judeus. Os campos de concentração. Todas as famílias viram dezenas de vezes “O Pai Tranquilo”, “A Vaca e o Prisioneiro”, “A Travessia de Paris”… Todos lhes conhecem de cor as réplicas e as peripécias. Todos se riram – a bandeiras despregadas – com as partidas pregadas aos alemães. Todos se comoveram mil vezes com o Desembarque e a libertação de Paris… Sendo “Travail, famille, patrie” a divisa do marechal Pétain, vencedor da Grande Guerra mas também, a partir de 1940, o chefe de Estado que colabora com Hitler, estes valores foram questionados após a Libertação; e por consequência o patriotismo de 1914 tornou-se igualmente suspeito.
O combatente da Grande Guerra manteve-se porém no horizonte porquanto o último, Lazare Ponticelli, morreu em março de 2008 com cento e dez anos; víamos no telejornal as cerimónias comemorativas durante as quais, acompanhados por antigos combatentes, cada vez mais escassos, é certo, os sucessivos presidentes iam depondo coroas de flores no túmulo do soldado desconhecido no Arco de Triunfo num dia agradável – por ser feriado – embora quase sempre chovesse: 11 de novembro. Mas qual o peso deste rito republicano? Claro que em todas as vilas e cidades há um monumento (não raro muito feio mas um grande negócio: o sangue dos combatentes continuou a engordar grandes e pequenos tubarões após a Grande Guerra) com a lista dos mortos, claro que em cada família houve lutos e, nos casos mais felizes, sobreviveu um (vários) mutilado(s) ou na aparência não mutilado(s) que todavia, no resto das suas vidas, poucos ouviam quando teimava(m) em repetir memórias… A Grande Guerra carbonizara os valores que lhe haviam servido de pretexto. O progresso, a civilização, o heroísmo, o patriotismo?… Estas palavras-chave de 1914 tinham-se desvalorizado. Outras uniram os Resistentes em 1940, liberdade, igualdade, fraternidade… Por exemplo.
Jean Jaurès, assassinado no dia 31 de julho de 1914, defendia a união dos trabalhadores de todos os países não vendo no povo alemão um inimigo, mas sim o instrumento de um capitalismo que precisava de guerras para se expandir – todos conhecemos igualmente o pacifismo trágico da alemã Rosa Luxemburgo; nos quatro anos seguintes a violência obriga a uma reflexão, patente tanto na “Canção de Craonne” como em textos literários, que conduz os soldados à revolta: muitos serão fuzilados; e no meio século que se segue este pacifismo continua a expandir-se: quem ganha com as guerras nunca morre nelas, quanto ao resto basta esperar porquanto, quando lhes convier, os poderosos saberão transformar os inimigos em amigos… Boris Vian e Georges Brassens (entre muitos outros) difundiram este pacifismo na canção popular.
As comemorações do centenário da Grande Guerra – que começaram em 2013 – têm sido em França ocasião para debates, exposições, espetáculos, documentários, conferências, edições muito numerosas, programas de rádio e televisão, recolha de documentos (filmes, diários, fotografias, correspondências, etc.)… Há vinte anos que os franceses se começaram enfim a interessar pela Guerra de 1914 mas a homenagem aos combatentes chegou demasiado tarde: por isso Lazare Ponticelli recusou que o seu corpo repousasse no Panteão Nacional.
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