I
“Estás por fim cansado deste mundo antigo
Pastora ó torre Eiffel o rebanho das pontes solta balidos nesta manhã”
Guillaume Apollinaire, “Zone” in “Alcools”, 1913
No segundo verso de “Alcools” Guillaume Apollinaire transforma a torre Eiffel – emblema da modernidade – numa pastora que guarda as pontes do Sena: o “mundo antigo” (a “Ilustração Portuguesa” designa-o como “velho mundo”) cansa mas ainda perdura. Por isso no dia 2 de agosto de 1914 os mobilizados desfilam nas ruas com os pés no presente e a cabeça no passado, embriagados de heroísmo, exaltados pela propaganda, gritando “Para Berlim!”, esperando uma vitória imediata: regressarão para as vindimas. É urgente libertar a Alsácia e a Lorena, ocupadas pela Prússia em 1870, dar aos alemães uma lição definitiva, combater para as invasões acabarem…
Porém nada sucedeu como calculavam. Não arrebataram o capacete do imperador, a guerra prolongou-se para além das previsões e, pior do que isto, não coincidiu com as imagens que levavam na mochila, porquanto sonhavam com a bravura do combate corpo a corpo (a guerra antiga) mas foram mortos ao acaso e à distância numa escala para eles impensável (a guerra contemporânea). Houve gases, foram gaseados. Houve granadas, morteiros, metralhadoras, artilharia complexa, tanques, zepelins, aviões de combate – o que, entre os soldados franceses, veio a dar 1.357.800 mortos, 537.000 prisioneiros e desaparecidos, 4.266.000 feridos entre os quais meio milhão de inválidos e mutilados, cegos, loucos, estropiados, “gueules cassées” (rostos desfigurados), para além do aniquilamento perene de espaços habitados e de um vasto território, tanto terrestre como marítimo, poluído com cadáveres, bombas, tóxicos, metais, causando danos ecológicos que continuam hoje – e no futuro continuarão – a ser nocivos.
Houve quatro anos de trincheiras. “O soldado na trincheira/ não passa duma toupeira/ vive debaixo do chão” (Versos de um fado.) Quatro anos passados longe das famílias, das suas vidas e das suas noivas, na neve, na chuva, no som dos canhões, no risco permanente das bombas e dos ataques, a respirar gases mortíferos, no terror de serem enterrados vivos, no horror dos pedaços de corpos, no cheiro desta carne – homens e animais – decomposta, vendo os ratos devorar os cadáveres, atacados pelos mesmos ratos, infestados com pulgas, piolhos, percevejos, escorregando em lamas de sangue e tripas, ficando semanas sem dormir, sem poderem lavar-se, mudar de roupa, descalçar as botas, vendo morrer os companheiros aos milhares… “Ah Deus! Como a guerra é bonita”, escreve Guillaume Apollinaire entre inversão, provocação e “bellus horrendus”. O combatente não passa sobretudo de “carne para canhão” e, sendo impossível identificar pedaços de vísceras, é então inventada esta figura heróica: o soldado desconhecido. Não era bem a glória à qual os mobilizados aspiravam…
Para não concluir nada, no dia 11 de novembro de 1918 houve um Armistício que, parecendo fechar “la der des ders”, a última de todas as guerras, monstruosa demais para ainda haver outras: conduziu de imediato à seguinte.
(Continua)
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