Este é um relato das memórias entre 1975 e 2001, balizadas por dois acontecimentos que mudaram a vida de Eduardo Pitta e o mundo, respetivamente a independência de Moçambique e a implosão das torres gémeas. Um discorrer de episódios da sua vida tendo como pano de fundo os acontecimentos históricos e alguma ocasional maledicência “sem nunca pisar o risco da inconfidência”.

 

Sem passado universitário nem filiação partidária, Eduardo Pitta, será sempre alguém que não sendo estranho ao Meio, nunca lhe chega a pertencer. Os “capatazes da poesia” tinham muito a vigiar, ele era uma avis rara; apesar de o “Meio” reconhecer aos poetas uma certa marginalidade (aos romancistas era exigido que tivessem uma profissão bem cotada na hierarquia social, médicos, professores, advogados, diplomatas).

A escrita de Eduardo Pitta prima por uma elegância que traduz a sua forma de estar na vida, nos ambientes e na amizade. Em 1976, em pleno inverno, vai esperar a mãe que chega de Moçambique. Compra-lhe umas luvas e um casaco comprido que a mãe vestiu mal desembarcou. Não temos aqui o relato desse encontro, se houve abraços e lágrimas ou se foi uma receção fria e distante. A intimidade não é para ser partilhada por terceiros. Existe apenas o registo da elegância do gesto (e sim, o casaco serviu-lhe na perfeição “se o tivesse provado não cairia melhor.”). A contenção e a economia da escrita reduzidas ao essencial, sem espreitar intimidades privadas que apenas interessam aos próprios.

A mesma reserva é dispensada ao seu processo criativo. Podemos saber onde foi um qualquer jantar, o que se comeu e o que se bebeu, mas em momento algum sabemos como compôs um poema ou o que o inspirou. Do processo criativo de Eduardo Pitta nada nos é revelado, cai na esfera restrita da sua intimidade. A exposição desses momentos em nada lhe servia para prolongar o gesto ou a atitude de grande apreciador do lado requintado da vida. “Entre os Bushmills 21 anos, o famoso ratatouille da casa, perdiz à convento da Alcântara, um Barca Velha de 78, leite creme. Café, conhaque e Cohibas, passava das cinco da tarde quando descemos a rua das Mercês. Hoje já não se fazem almoços assim.”

O requinte da boa mesa, do bem vestir, os ambientes seletos, os bons restaurantes, as viagens em primeira classe, a gente bonita, são descrições que roçam o snobismo sem nunca ultrapassar os limites da autenticidade, são elitismos na sua essência mais pura. Desprende-se deles uma certa crueldade. Das impressões da sua estada no Brasil, remata com um rotundo: “E depois havia o povão. Não frequentei.”

Este Pitta, visto por ele próprio, não faz concessões à sua imagem. Talvez seja isso que confere autenticidade à sua escrita e ao relato das suas memórias.

Frequentemente, é referida uma lista de nomes, desde poetas (“não vale a pena excitarem-se com as ausências”), a escritores (“falta gente, mas não me pronuncio sobre o que não li”), e os que estavam presentes nas noites do Frágil. Um estávamos lá todos que nomeia, mais os ausentes do que os presentes. O Meio, surge assim sobre o olhar impiedoso de Pitta. Uma atitude de quem, podendo, não perde o tempo em ajustes de contas; se estavam presentes, ele nem os viu.

A escrita de Pitta é soberba. Somos arrastados para essas imensas moradas que o céu parece ter, como se aqueles ambientes e aquelas pessoas nos fossem familiares. Uma viagem guiada a um mundo no qual também somos marginais. Esse parece ser o “nó górdio da equação” que nos prende à leitura deste “Um Rapaz a Arder”.

Texto publicado no Acrítico, leituras dispersas, em Julho de 2013.

António Ganhão

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