Todos os dias são Meus, Ana Saragoça

Este romance abre com chegada da polícia. Um detetive, omisso em todo o livro, investiga a morte de uma jovem, assassinada no elevador do prédio onde morava. Apenas escutamos a voz dos personagens em resposta à sua investigação. É um maestro conduzindo uma orquestra onde os solistas se sucedem, ao longo do prédio, piso após piso. O primeiro depoimento é da porteira, protesta, com receio de que a possam incomodar por causa do cão. Não lhe ocorre que a polícia esteja a investigar o crime ocorrido. Este testemunho introduz-nos os moradores, vistos pelos olhos de uma mulher amargurada.

Para a porteira, a jovem tinha casa posta. Para o professor, era a que tomou o lugar de todos os que havia perdido. A mais desinteressante das criaturas, uma pessoazinha baça e insignificante, para a namorada do engenheiro. Uma menina tão bonita, para a empregada do professor. Esta jovem parece vestir uma pele de camaleão: adapta-se aos olhos de quem a vê, como se não fosse dotada de existência própria.

 

Tomou para si o passado de outra pessoa: a terra onde nasceu e cresceu, as memórias de uma vida que não teve. Um cuidado seu, certamente, para não incomodar mais ninguém com a sua própria vida.

Regista as suas impressões num livro, resgatado do lixo, um registo de deve e haver de uma mercearia. Apodera-se do que pertenceu aos outros, tal como as memórias do seu passado, roubadas a alguém que, provavelmente, se esqueceu delas por não mais lhes encontrar utilidade. Um livro de deve e haver é o adequado para registar a razão da sua vida.

… mas a sua característica principal é a ausência de vontade.

Alguém, indefinido e sem rosto, decidiu por ela o seu destino. Adivinhou-lhe o talento para as letras e encarregou-se de que estudaria. Ela procurou não desapontar, como se temesse que lhe devolvessem a razão de decidir sobre a sua vida. Essa despreocupação permite que se abra um espaço no seu mundo interior.

Não tem nada em comum com os habitantes daquele prédio. Talvez partilhe algo com o jovem quadro, que apenas alugou o apartamento por um mês. São ambos seres esquecíveis para quem se cruza com eles. Sem vida social, sem grande interação com os outros. Mas, as semelhanças terminam aí. O jovem quadro torna-se num observador atento do mundo que o rodeia ao entregar-se às ordens de alguém. Vive a volúpia da presa que em nada é inferior à da fera.

A jovem sente-se confortável a observar a vida das outras pessoas, espreitando as suas rotinas pelas janelas das suas casas e, quando sente que viu o suficiente, refugia-se na casa que considera sua. Colocou umas cortinas de renda na janela e, por vezes, da rua, espreita a sua janela onde a luz suave brilha filtrada por cortinas de renda. Encontra aí o seu aconchego.

sorrio para um gato imaginário que se esparrama na luz a meio de uma divisão.

Todos parecem ter dificuldade em definir a relação que tinham com ela. O professor receia ser mal interpretado, o jovem quadro, no limite, refugia-se num compromisso assumido, enquanto a namorada do engenheiro desabafa: eu não sei o que ela queria, mas ela sabia-o muito bem.

Esta jovem descobre em si um lado avassalador que lhe permite dominar os outros, ditar-lhes ordens que estes acolhem com a sensação de pertença. Então faz disso, estranhamente, um instrumento de generosidade, de caridade até. Comanda a vida do jovem quadro, sem que ele saiba quem lhe dá as ordens, e domina a namorada do engenheiro. Este é um livro sobre a solidão das pessoas que se perdem no seu mundo sem se darem conta disso, sem se aperceberem da sua própria vulnerabilidade. Vidas fechadas sobre si mesmas, à espera de serem resgatadas, lançadas num pátio de onde espreitam a tão igual vida dos outros para que se sintam finalmente livres.

A escrita de Ana Saragoça envolve-nos numa volúpia dominadora, o leitor deixa-se conduzir por uma tímida curiosidade e empolgante expetativa. O relato de uma Lisboa que se recolhe nas suas casas, desconfiada da rua, numa escrita que nos surpreende, tanto pela sua estrutura, como pela forma segura com que caminha até ao desfecho final. Depois, temos a audácia de certos episódios, sempre narrados com uma irrepreensível elegância. Momentos de erotismo construídos com uma delicada mas eficaz eloquência. O meu engenheiro chegara à terra prometida e explorava-a de catana em riste ou o fundo das suas costas a pressionar-me o pénis e ele a reagir como um cão que reconhece o dono.

Ana Saragoça estreou-se na escrita de romances com este título, uma arte que prova dominar na perfeição. Como leitores, ficamos às suas ordens.

As minhas respostas a tudo isto seriam forçosamente decepcionantes, mas felizmente não lhe ocorreu fazer uma pausa para ouvi-las.

E, surpreendentemente, descobri-me poderosa, avassaladora. Descobri o gosto de dominar e fazer dele, estranhamente, um instrumento de generosidade, de caridade até. Como o mundo prova abundantemente, são muito mais as pessoas que gostam de ser mandadas do que as que gostam de mandar. As que sabem mandar são escassas. Uma delas sou eu. Quando dou largas; a esse talento, o resultado é invariavelmente muito satisfatório para ambas as partes. A volúpia

da presa não é inferior à da fera. É uma sensação quase beata, pensar que consigo ajudar-me e ajudar outras pessoas sem, felizmente, ter de aproximar-me delas.

 

Editorial Estampa – 2012

António Ganhão

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