De ontem e de hoje e, principalmente, saudades de amanhã. De amanhã de manhã, de amanhã de tarde e da parte da noite, de quando a noite virá roçar o meu rosto como um véu antigo a desdobrar-se sem pregas, sem cheiro, sem mácula. Saudades de um não sei quê que não veio ontem e que nem veio hoje, mas sim num amanhã desprovido de verbos e substantivos, desprovido de qualquer gramática. Saudades de tudo quando tudo era gás e vapor e eu me disfarçava e era Lilith, eu fui Lilith e castiguei-te e tu, vendido, escorraçado, envelheceste. Que castigo maior? Que saudade pode ter o meu coração ao te relembrar novo, jovem, nu, o olhar líquido tal como a nuvem que não chega a esvoaçar? O olhar quente tal como um sol que não chega a despontar? E eu, que faço agora depois de tanto ter esperado por ti, aqui e ali, ontem, hoje e com saudades de amanhã?
Lembras-te, quando nos encontrámos no paraíso pela primeira vez? Eu deslizei na direção das tuas mãos os meus longos dedos ansiosos e tu, nessa altura de vigília e de atenção disseste-me tens dedos de apóstolo, podias ter dito tens dedos de pianista – que é o costume para os dedos longos – ou dedos de marinheiro, daqueles marinheiros que vão e não voltam. Mas não. Balbuciaste tens dedos de apóstolo. Eu engavinhei ainda mais os meus dedos de apóstolo nos teus dedos meio gastos, pesados, carnudos, calosos e achei-os únicos e doces. E tive desde logo saudades deles porque sabia, sempre soube, que as saudades haviam de roer-me, saudades desse amanhã que tardava em aparecer mas que surgiria. Amanhã, era um grito indispensável na sede e na fome da palavra saudade. Então, nesse jardim do paraíso onde eu, numa árvore qualquer me enrosquei e te procurei, sagazmente, muito definitivamente te procurei, tu, às tantas, com timidez vens ter comigo e estendes o braço direito que termina na mão direita cheia de dedos, com cinco dedos, não mais, cinco dedos massacrados pela vida, cinco dedos já fartos de explorar outros corpos muito mais sólidos que o meu corpo, muito mais corpos que o meu corpo, muito mais hábito, muito mais fica, muito mais vai, muito mais vem, muito mais nasce, muito mais morre.
Cansada de ter saudades da terra e da árvore mais imediatamente imediata que esta onde me encontro, cansada mas feliz da vitória de te ter, te grito, te olho, te aceno, te chamo, te sim, te não.
E tu, que me estendeste o teu braço, nem imaginas o que te espera se, realmente, aceitares o que te ofereço. Se aceitares o que te ofereço, serei expulsa da árvore e passarei a injuriar-te a ti que és o culpado das minhas saudades. Arredondarei o meu olhar só para ti, dirigirei o toque de um só dos meus dez dedos das mãos e penetrarei na tua carne sob a tua pele e tu chorarás e não mais me verás.
E assim aconteceu. Chamei-te, olhaste-me, toquei-te, avisaste-me, voltei a tocar-te e ouvi-te num clamor divinal, observei o teu triste desaparecer e o meu triste desaparecer e então a árvore caiu, a terra tremeu e a luz não voltou. As trevas conduziram-nos ao nosso deserto mesmo sem a luz da lua, mesmo sem a luz de todos os astros que palpitam e vibram no firmamento.
Fomos ambos expulsos e condenados: eu, substituí as saudades impróprias que sentia e me devastavam, essas saudades dum amanhã que nunca veio por um dia claro, num amanhecer líquido e fresco que me devolveu a esperança e tu, que acabaste por ceder ao meu desejo, saboreaste e saboreias um destino eterno: caminharás sempre sozinho sobre a terra, esta que já conheces e mais algum mundo novo.
CRISTINA CARVALHO
Fevereiro 2012