Festa da família, da comunhão e da congregação familiar, tempo de reflexão, de concórdia e de amor, o Natal representa também a ausência e a recordação dos familiares que já não se encontram entre nós. Daí, a alegria própria desta quadra ser atenuada por um sentimento de nostalgia, de saudade e tristeza, reconhecido em diversas práticas que têm lugar nesta data, algumas vindas da Antiguidade, a lembrar rituais pagãos efectuados no solstício do Inverno, relacionados com o culto dos mortos, posteriormente perfilhados e integrados no conjunto das celebrações da Igreja Católica em louvor do nascimento de Cristo.
Dessas práticas e costumes, que relacionam a própria ceia da família com anteriores ritos associados ao culto dos defuntos em épocas remotas, ressalta a crença popular de que «os mortos da família regressam na noite de Natal à casa que habitaram em vida para participar na reunião familiar e tomarem parte na Consoada».
Em certas localidades do Alto Minho, continua a manter-se o hábito de colocar-se um talher na mesa «destinado à pessoa da família falecida em data mais recente». No Norte, dispunha-se numa outra divisão da casa uma pequena mesa «com a duplicação da ceia, consagrada aos familiares desaparecidos». Outras vezes, deixava-se «do lado de fora da porta da casa, à meia-noite da noite de Natal, um prato com um pouco de tudo de que se compunha a Consoada, levando-se uma luz para que as almas, vindas na figuração de borboletas brancas ou negras – conforme fosse bom ou mau o seu lugar – pudessem ver o que a família lhes destinara».
Ainda há pouco tempo, na região do Barroso, era hábito evocar o nome dos familiares falecidos antes de se dar início à ceia de Natal. Noutras localidades do nosso País – incluindo Lisboa – a mesa da Consoada fica posta, por vezes, desde o Natal até ao Ano Novo. Costume baseado na crença de que «os mortos da família estão presentes durante a quadra natalícia», crença que persiste em Ousilhão, Vinhais. A mesma intenção faz com que em certas regiões «não se levante a mesa da Consoada até à manhã do dia de Natal», ou, no caso de levantar-se, «voltar a colocar-se sobre ela algumas iguarias, para que as almas que apareçam mais tarde encontrem de comer» (numa outra versão «para os Apóstolos virem comer»).
Em diversos países da Europa (Espanha, França, Inglaterra), deixava-se o fogo aceso na noite de Natal e reservava-se um lugar à mesa da Consoada destinado «ao Menino Jesus». Com intenção piedosa colocava-se ainda sobre a mesa leite ou cera destinados às almas e acreditava-se que «nessa noite os fantasmas não deixavam de aparecer».
A convicção de que em certas datas festivas, como o Natal, se deve comer filhoses ou outras espécies alimentares fritas, leva, igualmente, a que entre nós, em diversas localidades, associada a essa crença, se conserve a praxe de fritar nesses dias em azeite «algumas folhas de oliveira, para que as oliveiras fortaleçam», representando esta prática «um ritual mágico de excomunhão dos elementos maléficos ou nocivos que infestam por esta altura as árvores e a natureza».
Estes princípios poderão, eventualmente, estar relacionados com o facto de a abóbora (com a qual se fazem as filhoses) se encontrar associada aos ritos propiciatórios do culto dos mortos (geralmente como máscara usada nas figurações humanas). Daí, provavelmente, a razão da sua utilização em praxes rituais ligadas aos manjares cerimoniais do Natal e de outras quadras festivas, empregue nas suas diversas variedades: abóbora-botelha (cabaça); abóbora-moganga (menina); abóbora-jerimu (amarela) e abóbora-chila (anã) – quer em doces, papas ou filhoses.
Outra praxe referente ao culto dos mortos (caída em desuso) observava-se no costume de se espalhar palha no chão da sala, principalmente na cozinha, enquanto a lenha ardia na lareira, cobrindo-a depois com mantas sobre as quais se deitavam e dormiam os membros da família até de manhã, deixando, assim, desocupadas as suas camas «para nelas poderem repousar os seus familiares defuntos que tinham vindo de visita a casa».
O ritual da palha – colocada ainda hoje depois da ceia, junto da lareira, em muitas casas das nossas aldeias – resultará da explicação de «Jesus ter nascido sobre as palhas na manjedoura de Jerusalém» – palha que só deve ser retirada do chão na noite do dia 25. Esta praxe verificava-se noutros países da Europa, como a Suécia e a Dinamarca.
O azevinho, planta alusiva ao Natal, encontra-se, igualmente, ligado ao culto dos mortos, por ser com ele que noutros tempos se enfeitavam as campas na quadra natalícia. Localidades há, onde ainda se visitam as campas dos familiares na véspera de Natal, para nelas deixar um ramo de azevinho.
À noite, quando colocado sobre a mesa da Consoada, simboliza «o espírito da reunião familiar» e a «celebração da união da família».
Soledade Martinho Costa
Do livro “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol. VIII
Ed. Círculo de Leitores