Acordei com os pulmões em brasa as axilas suadas a t-shirt colada ao corpo. Pressenti a sua presença no negrume do quarto, a respiração surda, a cabeça pousada no travesseiro e os cabelos emaranhados nos meus dedos. Deixei-me estar em silêncio na escuridão, deitado de costas a olhar o tecto e reparei em pequenas manchas escorregando em direção ao centro. Inspirei pelo nariz, expirei pela boca, tentando em vão controlar o excessivo estado de ansiedade que se tinha apoderado de mim na visão das borras de humidade que pareciam por algum estranho desígnio, estarem a expandir-se a cada vez que lhes lançava o olhar. Deixei passar algum tempo e os olhos começaram a captar pequenos fios de luzes esgueirando-se pelas frinchas das persianas. Ao meu lado, os lençóis brancos subiam-lhe pelas coxas maduras e pousavam-se dobrados sobre a cintura, deixando a descoberto um rosado umbigo, onde uma fina bola de cotão celeste se alojara; era apetitoso, um biscoito acabado de sair do forno. Remexeu-se no colchão e soltou um largo suspiro que me transportou de repente a manhãs passadas. Por fim controlei a perturbação que sentia, beijei-lhe a barriga e escorreguei pela cama. Não tenho ilusões, há muito que deixei de semear sonhos irrealizáveis, podeis argumentar que tal coisa não existe, mas ambos sabemos a verdade, por isso só me concedo ideias pragmáticos e racionais, esquivo-me da dor e só colho o que planto, mesmo assim, a imprevisibilidade da vida ainda me vai pregando algumas partidas. Podes alegar que esta maneira prática de viver me aproxima da morte e eu digo que sim, que fujo à vida vivendo em linha recta, eu continuo a concordar, e o único argumento que tenho, está enterrado no passado e tento não o despertar. Sei que não és tu deitada aqui ao meu lado, apenas um fantasma fruto de sonho revivalista, mas podíamos tentar, eu passeava pela tua intimidade num roupão quente e aquecia-te as mãos com o sopro do meu desejo. Podíamos fingir, sabes? Levava-te o pequeno-almoço à cama num tabuleiro cheirando a café fresco. Mas não posso, prometi a mim mesmo não fazer planos a longo prazo, não sonhar acordado com pesadelos, por mais agradáveis que possam parecer. Passo a palma do pé pela coxa quente de sono, ela estremece e balbucia sons sem nexo. Podíamos tentar se a luz teimosa não forçasse com mais tenacidade a sua presença e me devolvesse a tua cara por completo que não reconheço. Deixo cair a perna da cama, viro o corpo até o rodar ao extremo do colchão e num silêncio de caçador, pouso os pés despidos no chão frio e arrepio caminho até à casa de banho. Cheiro-me nos braços e no peito, não arrisco o barulho de um duche, molhos as axilas, o pescoço e esfrego os olhos no fio de água a correr. A louça da sanita está partida a meio e o espelho rachado num canto. Visto as calças, não encontro as cuecas nem as meias. Desligo a luz e abro a porta. Estou-te agradecido mulher, perdoa-me se não o consigo verbalizar, mas não tenho palavras para situações assim, nem vontade de as desenterrar. Estás tranquila dentro do sono e por agora é tudo que basta para mim. Lá fora o restolho da cidade entra em finas vagas pelos poros do quarto e uma estridente sirene despedaça a rua e desaparece aflita na próxima curva. A derradeira amante aguarda-me lá fora. Hesito em deixar-te uma prenda, não sei se deva, não faço ideia. Encosto a porta e encaro o corredor da pensão, tem os tapetes roçados e tinta desbotada nas paredes. Tudo me parece velho e decadente. Acendo um cigarro apesar dos avisos a vermelho e desço até à recepção. Odeio a expressão manhosa do homem atrás do balcão, quando lhe digo que ficastes ainda a descansar mais um pouco, odeio o sorriso cúmplice com que agarra nas notas que lhe entrego.
Uma corrente de ar frio atinge-me de chofre quando atravesso a porta de entrada. Uma chuva miudinha começa nesse instante a cair. O ruído é acolhedor, as abruptas paredes dos edifícios, regadas da luz eléctrica matinal, apresentam-se cinzentas mesmo desesperadas. És redentora cidade, porque todas o são, ao concederem despidas o dom da invisibilidade a quem por lá vagueia. Podemos falhar centenas de juízos, perder um amigo, autodestruímo-nos em espirais viciosas e mesmo assim ela oferece-nos oportunidade de voltar a tentar; há sempre um canto para todos no grande ventre urbano. Mais um recomeço para mim naquela manhã húmida, o homem que não sonha, arrastando atrás de si a razão em estado bruto, o 2+2 igual a quatro. Quero partir sem me mover, procuro um local ficcionado, mas não me dou ao luxo de imaginar, desenhar uma pequena porta na soleira do passeio e de gatas atravessar até ao meu país das maravilhas. Impossível, eu sei, a cidade é uma amante possessiva que dá mas pouco consente. Entrei na estação, gosto de ver comboios partir e chegar, gosto das massas fulgurantes de pessoas que pairam em lentas curvas pelos cais de embarque. Rodam sobre si mesmos em lentos bailados, como bandos de pombos em manhãs de domingos. Volto à ferida, sinto um certo prazer em remexer nela. Aqui é fácil ripostar argumentos, bem vistas as coisas só discutíamos e praguejávamos, atacavas-me com a minha inércia eu respondia com silêncio diamante. Já não dávamos as mãos nos passeios e o Amor furioso deixou de nos lamber as feridas e cicatrizar as nódoas negras que sempre as há. Acabei a dizer-te que não era uma planta, como se isso fizesse de mim um Casanova dos subúrbios. Riste-te claro e dentro da honestidade da tua expressão, pensei que o tempo tinha recuado até ao início. Tanta gente na estação, caras coléricas e duras, pontiagudas e aleijadas, sorrisos plácidos, serenos, olhares melancólicos, meditabundos, cansados, quem é quem no meio da multidão, não importa porque a cidade recolhe e esbate. Eu sei quem sou, sou aquele que deixou de sonhar com o que não pode, aquele que por isso, está abraçado à morte e de costas para a vida. Deixo a estação para trás e todo mundo parece à distância de um passo, nada é impossível na cidade, contudo e como sempre, retraio os pensamentos, encosto-os à parede, mas sei que naqueles milésimos de segundos que levo a aprisionar aquela emoção livre, me encontro pronto para recomeçar.
Nuno Vieira