Este livro é um percurso pelo sofisticado universo cultural e social de Eduardo Pitta. Uma visão da nossa contemporaneidade reunida numa coletânea de crónicas multifacetadas. Testemunhos vivos, apesar do título provocatório, que nos conduzem através da literatura, do meio, da gastronomia, da crise e da falta de valores na gestão da coisa pública.

 

A primeira crónica lança um desafio sobre quem legitima quem, na cena literária portuguesa. A oferta de novos títulos explode semanalmente e novos valores – com rostos celebrizados pela TV-, desafiam a lógica do meio, com surpreendente sucesso de vendas e penetração no mercado de língua inglesa. Será o meio uma falácia? Bem, que ele existe, existe e manifesta-se nas suas fragilidades, nas patrulhas que vigiam e tentam regimentar sem pudor em provocar danos colaterais. O tom não foge. Perante os nossos olhos desfila o mundo tal como Eduardo Pitta o vê. Erudição e desassombro ponteiam a cada página e Portugal, formado por sucessivas gerações de subalternos, não escapa sem algumas amolgadelas. Depois existe a memória que não esquece o nosso passado colonial, tão recente, tão a evitar: Não sei quantos anos teria quando soube que a minha terra, afinal, não era minha. Era o país dos outros, isto é, do criado lá de casa, o motorista do meu pai (mais o ajudante, o cozinheiro, o mainato, o moleque de dentro, os criados de fora, o jardineiro, a babá dos meus irmãos mais novos) e os serventes do Barclays. Que portentoso grito de denúncia da realidade em que se viveu, até com algum conforto, e que tantos outros dotados, provavelmente, de uma consciência política precoce, vieram rejeitar, mas omitindo o mainato lá de casa. (Acabo de ler Mia Couto que admite, na revista Granta nº 4, ter tido uma infância marcada pelo facto de ser filho de uma família de emigrantes).

Não só o que se publicou ou a reação do meio ao que se foi publicando, merece uma análise crítica a Eduardo Pitta. Também os gostos dos leitores e as leituras que fizeram moda têm o seu espaço. Certos empolamentos só são justificáveis porque não se leu uma mão cheia de outros escritores. Não sendo um guia para leituras fundamentais, este Pompas Fúnebres oferece-nos um conjunto de referências e de títulos que são absolutamente incontornáveis. O risco é assumido, afinal:

O intelectual sempre foi o homem a abater, o ar do tempo apenas mudou as munições.

 

Este texto foi publicado no Acrítico, leituras dispersas em Outubro de 2014

António Ganhão

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