Eles existem. Ou dito de outro modo: eles existiram e existem. Trabalharam concentradamente, aplicaram as suas vidas, muitas vezes em situações extremas, na criação de obras – música, filmes, livros, pintura, escultura, fotografia. Os chamados “artistas”. Não vou agora falar de outras categorias, tais como, cientistas, investigadores, médicos, etc. Muitos saíram do país Portugal sempre pelas mesmas razões – a falta de reconhecimento, a falta de meios, a falta de incentivos. Saíram para nunca mais voltar. Outros ficaram, apesar de tudo. Fizeram sempre o que podiam fazer, porque era essa a sua condição: criar. E criar numa abstracção e num alheamento que lhes permitiu concluir, sem ajudas de poderes instituídos mas com apoios sinceros e admirados, apoios de quem pouco ou nada tinha a não ser a vontade, a admiração, e neles a esperança: os amigos. Porque muitas vezes um amigo, na altura certa, faz mais por uma causa de artista do que uma nação inteira.
Durante a vida, ou tiveram profissões paralelas, por vezes mediáticas e o público lá se ia lembrando que existiam, ou então, apenas os interessados nas suas artes é que estavam a par das actividades que esses artistas desenvolviam.
Os pintores pintaram. Os músicos musicaram. Os escritores escreveram. Os cineastas filmaram. Etc, etc, etc.
E um dia, morreram. Uns inesperadamente, outros, inevitavelmente – como todos nós – por via da idade ou da doença. Eis que de repente, mal se sabe de certa morte, levanta-se uma inesperada vaga, uma imensa onda de encómios, de putativa saudade, de toda a espécie de louvores! De repente, sobre aqueles ou aquelas que emigraram em dor cultural, que desapareceram e cujo rasto, publicamente, se perdeu, recai toda a tristeza possível, o mais negro luto, o mais alto pranto. Durante dois ou três dias não se fala noutra coisa, os telejornais abrem com a notícia da perda da vida de tal e tal, os jornais ostentam uma gritaria de letras bem carregadas, nas rádios começa a passar, se for caso disso, músicas atrás de músicas até à exaustão. Depois, nos funerais, é o ministro disto, o ministro daquilo, o presidente, o rei, a rainha, a corte inteira, os amigos renascidos das cinzas e ainda cheios de fuligem, os beijos de circunstância, muito pesar, muita dor, muito adeus fugidio, muita consternação, muita bochecha corada por ali a deambular à volta do caixão a ver se consegue ser vista, muito choro, muito ranho.
E no fim, pouca, pouquíssima gente, além da família e dos amigos mais chegados, sabe do que foi a vida de quem acabou de morrer.
Ainda ontem, pouco ou nada se sabia dessas almas estrangeiradas, o que é que fizeram, como é que viveram, onde, como e com quem habitavam, porque saíram, porque não saíram. Quantos e quantos artistas votados ao abandono cultural a ponto de subsistir apenas pela ajuda de mãos amigas conseguiram arrastar-se até ao momento final? Quem lhes deu a mão? Quem os dignificou? Quem os deu a conhecer ao povo que somos nós todos?
Com certeza que existem excepções. Essas existem sempre. Mas não é da excepções que falo.
Falo da ostentação e de uma glorificação inútil, de fazer crer uma bem-aventurança e uma prosperidade, uma atenção que nunca existiu. Falo de um país que pouco ou nada liga aos seus artistas. Que nada tem para lhes dar. Falo de um país inculto que continua abafado pela letra efe – fado, futebol e Fátima – e que, sem desmerecer tal letra, relembro que o alfabeto tem mais umas quantas letras simpáticas e elegíveis tal como a letra a de amor, a letra e de emoção, a letra i de impulso, a letra o de orgulho e a letra u de único.
Isto para falar somente das vogais.
CRISTINA CARVALHO
Crónica de Junho de 2012
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