“ Onde pousa a borboleta, ali é o centro” pag.32
Erri de Luca construiu um duelo poético entre dois seres dominados pela obsessão da perseguição e pela expectativa de um duelo.
Em O “peso da borboleta” há uma comunhão de entidades pertencentes a vários círculos existenciais: O animal, o homem, a natureza e o imaterial (a morte, os espíritos). Tudo se move em simultâneo e numa infinita conexão de causa-efeito.
A opção pela narração paralela da evolução dos dois personagens permite avaliar a comunhão da solidão, o avançar melancólico da idade e a perspectiva de finitude. Acompanhamos os caminhos que ambos trilham, a observação mútua e sentimos a aproximação do desfecho que adivinhamos dramático.
“ Chegou-lhe, a subir, o cheiro a homem e ao seu óleo. Pertencia ao assassino da sua mãe. Era ele, subia para abater gamos, sozinho, procurava o seu rei há anos” pág.14
A obsessiva perseguição remete, de forma explícita e implícita, para Ahab e Moby Dick. Tal como Ahab, ele é conhecido como o melhor caçador entre os homens, capaz e disposto a ir a locais onde ninguém vai. Chamam-lhe o “Rei dos Gamos” devido à quantidade que matou. No entanto, ele próprio sabe que é um ladrão que vai roubar alimento às montanhas e, ao contrário dos animais, está só de passagem pelo local. Por isso, prefere que o chamem de “ladrão de caça”. Apesar de conhecer as montanhas como nenhum outro caçador, ele não se considera pertencente àquele território. Aquelas montanhas são dos veados, dos cabritos montanheses e dos outros animais. Não são dele.
“O homem na montanha é uma sílaba no vocabulário” pág. 36
A postura do homem em relação à natureza, à sociedade e a Deus é de apropriação, observação e de cinismo. O movimento de ruptura pertence-lhe.
A relação com o Divino é de desconfiança e incompreensão. Ele interroga-se constantemente sobre o papel do “Patrão” na aceitação da morte dos animais através da espingarda. Por que razão Ele não intervém quando as suas criaturas são mortas pela caça? O caçador interpreta-se como algo que corrompe o que Deus criou.
Por sua vez, o vínculo entre homem e gamo, mais do que um confronto com o objectivo de anulação, é de interdependência, onde um complementa o outro.
Eles têm os caminhos cruzados desde muito cedo. O sangue foi derramado pelo caçador e jamais o seu odor saiu das narinas do animal.
“Nas suas narinas de cria entranhou-se o cheiro a homem e a pólvora” pág.7
Em consequência, o gamo torna-se um solitário, inadaptado às regras existentes entre a sua espécie. O desajustamento é um ponto comum a ambos. Nenhum dos dois se insere no colectivo. O homem posiciona-se à margem da sociedade. Frequenta diversos abrigos ocultos nas montanhas, onde se abriga das intempéries e se esconde do guarda-florestal. Eles são almas gémeas que aprenderam a viver sozinhos.
“Em todas as espécies, são os solitários que tentam experiências novas. São uma percentagem experimental à deriva. Atrás deles, o rasto aberto volta a fechar-se” pág. 28
Mas se o caçador se considera um intruso, o animal vive em perfeita comunhão com a natureza. Enquanto nas tempestades, todos se refugiam nas cavernas, debaixo das árvores, ou em casa, o verdadeiro “Rei dos gamos” adopta a postura inversa.
“ Estava em segurança lá onde todas as criaturas pressentem ameaças. Estava em aliança com o vento, o seu coração batia leve carregando-se da energia arremessada do céu para a terra” Pág. 50
Numa belíssima frase, o autor sublinha a total integração do animal na natureza; algo que não está acessível à limitada capacidade de observação do ser humano.
“ No verão, as estrelas caíam em fagulhas, ardiam em voo apagando-se nos prados. Então, ia para junto das que tinham caído mais perto, para as lamber. O Rei provava o sal das estrelas” pág. 27
II
“Era um dia perfeito, de fronteira nítida entre um tempo caducado e outro desconhecido” pág. 57
Desde o princípio do livro que assistimos à interacção entre o mundo tangível e o intangível. Ao decifrar a representação da borboleta podemos interpretar a Vida como diversamente contínua. A pluralidade de entidades existente no texto é parte integrante de uma Criação una. E observamos, desta forma, a simbiose entre a carne e o espírito.
A borboleta está sempre presente porque representa o espírito viajante e anuncia uma visita ou morte de alguém próximo. Entre os Aztecas, por exemplo, a borboleta é o símbolo da alma, do último sopro que sai da boca do agonizante. É, também, o símbolo do regresso à terra das almas dos guerreiros mortos.#
Assim se compreende a contínua presença anunciadora da borboleta e o seu peso no destino dos dois personagens.
Na primeira batalha pela supremacia dentro da manada, o gamo, após a morte do seu adversário, vê diversas borboletas brancas. Uma pousa no chifre ensanguentado e lá fica por gerações de borboletas.
Noutra ocasião, quando se prepara para disparar, uma borboleta pousa sobre a espingarda, desconcentrando-o e impedindo-o de disparar. Ela anuncia o fim, mas impede-o por não ser ainda o momento adequado.
No duelo final entre os dois, os chifres do animal sacodem uma borboleta que nele havia pousado.
“O Rei dos gamos soube de repente que o dia era aquele” pag.59
A borboleta é o prenúncio da morte. É o centro. E é ao pousar no chifre que vincula, definitivamente, os seus destinos. Duas almas que, em essência, são partes integrantes de um todo, unem-se finalmente.
Erri de Luca conta-nos uma história de obsessão, duelo, limites e eminente tragédia. Mas é, principalmente, uma história de dependência entre personagens, de demanda, de simbiose e transformação final.
Ahab e o caçador ficam amarrados às respectivas obsessões. E terminam com elas. Mas há uma pequena variação quando comparado a “Moby Dick”: a ligação com o animal é a única aliança que o homem consegue obter. Ficam juntos de forma definitiva. A carne, a natureza e o espírito.
Mário Rufino
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