O DEBITADOR | Cristina Carvalho

E então o rapaz levanta-se, entorta, ligeiramente, mas só ligeiramente a cabecinha para um lado – reminiscências de infância! -, ajeita os seus dois relógios, um em cada pulso, um verde, outro amarelo, esfrega as mãos, simula um auto-abraço, entrelaça os dedos das mãos, começa a andar de um lado para o outro do palco, com frenesim e alguma estudada e ensaiada atitude nervosa e começa a debitar um incompreensível, na sua totalidade, amontoado de palavras.
Dirige-se a um público atordoado – pensa ele – por tantas e singulares afirmações, um público que nem sabe bem onde é que está e o que veio ouvir.
O jovem debitador vomita e defeca palavras que não existem, questiona, ilude, prestidigita, inventa; o jovem debitador apresenta uma energia doentia, é baixote e ágil como um ladrão; forma frases compridíssimas, com mais palavras estrangeiras que portuguesas; tenta convencer em acto desesperado; de tempos a tempos, ergue os braços e incita a plateia a levantar-se e a aplaudir e faz-se de tal maneira insinuante que, num primeiro vislumbre, até confunde. E faz gestos, observa, ri-se e manda sentar, de novo! Apreciou a constatação: levantaram-se e baixaram-se a seu comando!
Eu sou quase Deus!
O jovem debitador não diz absolutamente nada. Nada de nada! É de uma banalidade confrangedora. São toneladas de lugares-comuns, resmas de frases feitas, pensamentos cansados, esgotados de tanto ouvidos. É um autómato, uma figura de cera que, se for deixada ao sol, derreter-se-à num ápice. Ele não sabe, ele não sente. Não deve ter sangue. A sua proclamada ambição e o seu expresso desejo é que todos os jovens deste desgraçado país trabalhem. E ele existe para nos convencer que, se não trabalham, é porque não querem e que se trabalhassem tinham sucesso garantido! Basta a vontade! O rapaz é cansativo. Rebenta-nos de cansaço! Fala à velocidade da luz e não dá tréguas. Não tem tempos. Não tem noções. Impõe. Exige! Ordena! Expulsa! Tudo explode à sua volta! Não! Não quero ouvi-lo nem mais uma fracção de segundo em todo o resto da minha vida! Irra!
O debitador tem sido recebido em todo o lado. Nas televisões, nas rádios, nos jornais como se de um Messias se tratasse, um espalhador da palavra, um arrebimba-o-malho de certezas e confianças no nada, no zero. Nada! Diz nada! Não há, naquele discurso, nada de coerente, de sábio, de conhecedor. Não há vida. No seu discurso existem todas as sombras de todos os desesperos, de todas as angústias, de todas as incertezas.
O ignóbil disto tudo é o sorriso satisfeito dos que o elegeram para encabeçar um movimento destes: o empreendedorismo jovem! E também daqueles que lhe dão cobertura mediática. É que isto chama audiêêências! Muitas!
No olhar deste rapaz não existe nada a não ser a vontade desmedida de se fazer notado seja de que maneira seja. Um case study, para usar umas das suas muitas lenga-lengas anglo-saxónicas e que passo a dar exemplos:
Mind set, interface, feedback, swaip, pitch, slide, as we speak, expertise, spam, newsletters e desculpem-me os erros, que alguma coisa deve estar mal escrita.
Não existe naquele olhar uma única estrela! Nem um grão de pó de estrela! Não há o desenho do infinito, não há um horizonte de sonho, ainda que possa parecer. Daquele sonho inalcançável, que faz dos homens seres excepcionais. Não há sedas, nem veludos, nem esconderijos secretos, nem absurdos de fantasias! Não há nada que se vislumbre naquele olhar de tão perdido que anda!
Que triste vida!

Cristina Carvalho

Agosto 2013

Das Letras

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