Uma menina desce à rua para se dirigir à estação de metro. É a rua onde mora. Desce os dez degraus de pedra entre a porta do seu prédio e o empedrado do passeio. “Não ia com pressa.” Tal como este relato.

Caminha distraída, atenta a pormenores sem importância, como acontece a quem caminha distraído. Umas ervas entre o empedrado, uma bolinha de papel ali, umas folhas, é o seu olhar que também não tem pressa.

Uma mancha negra surge-lhe no caminho, uma mancha negra que se estende e que se prende à sua atenção. É então que, como num flashback, a menina inicia o processo inverso, o caminho de regresso a casa. Sobe os dez degraus de pedra entre o empedrado do passeio e a porta do seu prédio. Apanha um saco de plástico. Faz o percurso até à sua descoberta, apanha algo e volta novamente a casa. O ritmo acelera, sobe a escada, entra em casa, vai ao quarto. Momentos soletrados, sendo cada um deles uma fotografia, uma rápida sucessão de fotografias.

 

Este livro da Cristina Carvalho abre com um aviso. “A revolução, não fui eu que a fiz. Nem fui eu que inventei a palavra-senha, nem fui eu que a atirei ao ar.” É importante fazer essa ressalva, mesmo que seja em tom casual. Sempre que uma mulher se liberta existe uma revolução, mas esta, a do 25 de Abril, foi apenas uma coincidência no tempo ou talvez não.

Os negativos recolhidos pela rapariga revelam rostos que a sua mãe conhece. “Todas as fotografias foram reconhecidas pela mãe da rapariga.” Como foi isso possível? Como sucedeu? Que importa? Aconteceu.

Estas fotos colam-se à narrativa, fazendo parte da forma como a história é contada. Uma foto, uma história. Parece simples mas não é. Por vezes, iniciam um capítulo, mas não os separam como os marcadores de livro, não lhe ditam o ritmo. O pulsar deste livro vive de dois momentos que são recorrentes e que se entrecruzam, a revolução, na expressão daquele dia em que eclodiu nas ruas de Lisboa, e a recordação das paixões de infância / adolescência. Mais do que as fotos, são estes dois momentos que marcam o ritmo do livro. Revolução e paixão.

Este é um universo feminino. Uma certa maldade é de se esperar. Maldade e traição. Os homens também estão presentes, mas são unidimensionais. Tão importantes como um outro pormenor qualquer: o paredão da marginal, os carros que passam ou os turistas que por ali se passeiam. São importantes na medida em que são os detentores do poder ou pelo menos, naquele tempo, esse era o lugar que lhes estava destinado pela sociedade. Uma sociedade em que a mulher era remetida para o papel de dona de casa submissa e fiel. Fidelidade e traição, sempre.

E esses homens respondem pelo nome de Anibal, Bé, Zé Manel… Existem os sedutores, os tiranos, os “mentirosos de amor”, todos eles incapazes de dominar. Esse papel cabe às mulheres. São mulheres as duas personagens mais fortes deste livro, das quais não conhecemos o seu nome. Uma delas surge dissimulada, numa escolha criteriosa de palavras, um limbo de ambiguidade que a esconde no texto. Foi seguramente difícil levar esse ardil até ao fim e, provavelmente, para muitos leitores, esse ardil permanecerá para além da leitura do livro.

E Bé presente na paixão da adolescência, Bé o marido e a paixoneta de infância que a persegue até à idade adulta.

“…vi-te o rosto e achei que eras tu. A voz diferente, tinhas crescido. Mas eras tu, de certeza absoluta.” “Realmente, tu eras tu e eu era eu.” E a paixão reencontrada, vivida novamente, em equívoco, em equívoco de sentimentos e traição. A traição em todos os géneros, ou sem género, como determinada roupa unissexo. E as palavras também, sempre as palavras urdidas criteriosamente, expondo e escondendo. “Olhei e tu estavas ali, mesmo aqui, mesmo ali, sem roupa. Estavas sem roupa no corpo.”

Sim, porque naquele tempo tudo se fazia, só que de forma mais dissimulada, mais escondida. A libertação da humanidade sempre se fez no feminino, foi assim que o homem se viu livre da pasmaceira do paraíso. A libertação das palavras, sem tabus sociais, sem falsa moral. Porque “As coisas repetem-se, a vida repete-se. Tenho a certeza.”

Tudo começou com uns negativos encontrados no chão junto ao lixo. Num tempo em que os negativos eram já coisa do passado. Tal como as nossas memórias são coisas do passado. “«Quer sorrir, menina?», pergunta-me a pessoa ajeitando a máquina, tacteando o botãozinho do disparo.”E esse momento ficou registado em película, depois em imagens sobre papel e, por fim, na escrita de Cristina Carvalho. Uma escrita que, como já vimos, sabe dissimular, libertar doses certas de ambiguidade e maldade, colhendo cumplicidades na nossa passividade de leitores. No final, reclamará a sua inocência.

“Olhar para estas fotografias tornou-se uma necessidade.” Ler este livro também.

 

Marginal, de Cristina Carvalho – Editora Planeta – 2013

António Ganhão

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