Memória é recuperar o que resta dos outros, de todos os outros, de que também somos feitos.
Teolinda Gersão, As Águas Livres
Vamberto Freitas
Quase todos saberão que parte do meu título aqui é uma paráfrase de um dito de William Faulkner num dos seus romances: “O passado não está morto, Nem sequer é passado”. Muita da literatura que nos toca profundamente pode depois ser lembrada através dos seus personagens mais marcantes ou situações inusitadas – ou por uma simples frase. Outro escritor sulista (e falar dos melhores escritores sulistas norte-americanos é também aproximar algumas temáticas que têm definido muita da escrita portuguesa do século passado, e até do presente), Thomas Wolfe, está mais ou menos esquecido, mas raro será também o leitor de língua inglesa que não recordará de imediato um dos títulos mais significantes de toda uma geração, a um tempo romântica e modernista – You Can’t Go Home Again/Não Se Pode Regressar A Casa. Os nossos percursos de vida não mexem com os lugares, mexem, sim, decididamente connosco os lugares das nossas origens. Nós estamos condenados a caminhar sempre, mesmo que só interiormente. Não se pode voltar a casa, por certo, mas podemos lembrar os que connosco a partilharam num prolongado momento das nossas vidas, quase sempre o tempo decisivo da infância e adolescência, e em que ficam para sempre sempre inscritos na nossa conscência as figuras e os incidentes que nos vão acompanhar a vida inteira.
Um livro de memórias é o quê? Uma autobiografia selecciona que factos e afazeres na vida de um escritor? Como se torna arte literária um “diário”, que poderá ser escrito com dias ou meses entre uma entrada e
outra, ou como se integra num cânone particular do seu autor ou autora? As Águas Livres/Caderno II, de Teolinda Gersão, é uma riquíssima fonte de reflexões sobre arte e memória, e ainda mais quando certas páginas da sua prosa se tornam em contos autênticos, com princípio, meio e fim, nos quais a vida interior ou afazeres relembrados e definidores do “carácter” do seu “protagonista” obedecem a certo mandato teórico desse mesmo género: o leitor fica com o conhecimento da fatia-de-vida inteira, um outro imaginário de certo tempo e geografia. As suas entradas não vêm datadas, mas acredito que estão organizadas cronologicamente – vamo-nos situando no tempo e nos lugares conforme um ou outro pormenor que a autora vai deixando cair ou relatando. Aliás, ler esta prosa recortada de Teolinda Gersão é entrar na mente e no quotidiano de uma grande escritora, As Águas Livres virando parte diário, parte autobiografia, parte reflexão teórica sobre o próprio acto escritural. Para mim provavelmente devido à minha formação académica norte-americana – um dos maiores prazeres literários é precisamente este género de confessionalismo intelectual meio disfarçado, estes fragmentos incisivos de, uma vez mais, considerações filosóficas, memória de lugares e dos seus “personagens” – a linguagem das coisas e gentes transfiguradas, a linguagem dos nossos afectos e os uivos dos nossos ódios, a génese da arte revista e revisitada. Por certo, como insistiam os new critics americanos, um leitor poderá dispensar por completo conhecimentos biográficos de qualquer autor, a obra ficcional ou poética ou se auto-segura, por assim dizer, na sua unidade total, ou então não vale como “literatura”. É claro que exageravam propositadamente: conhecer o pensamento íntimo de um autor ou autora é abrir mais profundamente a percepção da sua restante obra. Só que estes “cadernos” de Teolinda Gersão oferecem-nos também e só por si o prazer do texto, contêm nas suas páginas outros mundos ou “realidades” autónomas que passam a fazer parte do que mais lembramos da sua escrita no seu todo, o que dela nos fica entre a ficcão e a realidade, a ordenação do caos nas nossas vidas.
As Águas Livres é um livro de supresas constantes – de tema em tema, a autora vai-nos abrindo as portas ao mais inesperado no seu e nosso
pensamento, fazendo literatura-outra ora com o realismo na descrição de um antigo prédio lisbotea prestes a desabar, com a narrativa do comportamento de um personagem à solta na rua ou aprisionado/a na sua gaiola urbana habitacional, ora com o diálogo que trava com outros artistas da palavra, com certos filósofos da nossa infelicidade, com a música ou com as artes plásticas. Razão e emoção – nada nestas páginas sobressai em cinzento, ou numa suposta objectividade ou distanciamnento. A autora relembra o seu passado numa província do país com a mesma acuidade crítica, bondade e sensualidade com que olha e vive os seus dias no centro da cidade de Lisboa, ora banhada na sua luz solarenga ora tortuosa nos seus labirintos de pobreza e desespero. Esta é a outra “cidade de Ulisses”, só que agora revisitada e vivida sem o filtro da ficção pura, a autora e narradora sendo uma só pessoa real movendo-se e falando sobre a sua vida de mulher, mãe e amante, a Teolinda Gersão num magnífico autoretrato oferecido aos seus leitores, um abrir de corpo e alma que nos leva de imediato a algumas das suas reinventadas protagonistas noutras obras. Cada livro seu poderá tomar formas diferentes, mas cada um deles como que se encaixa perfeitamente num imaginário completo dos seus mundos e memórias, contradizendo e depois reconstruindo a “verdade” dos seus dias, reimaginando tudo e todos como que num palimpsesto, que é afinal a natureza implícita de toda a literatura.
“A criatividade – escreve Teolinda Gersão quase no início de As Águas Livres, talvez sugerindo levemente aos seus leitores o que esperar ou até como interpretar o que se segue, entrada a entrada – é destrutiva, em parte a sua raiz é a destruição. Afasto-me da limpidez da alma, porque é necessário o limo. A criação surge da matéria: densa. Impura”.
Se na ficção é Teolinda Gersão por detrás da máscara de uma “narradora”, a inventora das suas personagens e a quem lhes dá corpo e alma, nos seus cadernos As Águas Livres são as suas personagens que nos reinventam a autora do mesmo nome, “Teolinda Gersão”. Creio ser isso mesmo o que ela quer dizer ou signiicar quando escreve as palavras que aqui servem de epígrafe: “…o que resta dos outros, de todos os outros, de
que também somos feitos”. A humanidade que aparece nestas suas páginas vai desde um mendigo na aristocrática Almirante Reis, aos avós e familiares da província de origem aos mais conhecidos nomes da literatura ou escrita filosófica internacional (Freud, Kafka, Goethe e Kierkegaard, por exemplo), a escritores portugueses como Vitorino Nemésio, um dos mais faulknerianos escritores nossos quando insiste em recriar toda uma geografia muito sua e a cultivar a memória da comunidade através de excêntricos personagens de livros como Mau Tempo No Canal. Do mesmo modo, algumas das figuras “verdadeiras” de Teolinda Gersão neste livro são ainda mais estranhas ou mesmo “implausíveis” do que as dos seus romances ou contos. É certo que, hoje, se um ficcionista reinventasse certos personagens, provavelmente um editor inteligente rejeitaria essas criações por falta de, digamos, consistência psicológica ou comportamentos “inacreditáveis” adentro do realismo literário a que a maioria dos leitores se habituou desde há muito. Mas elas existem na realidade, essas personagens absolutamente originais e de pouca credibilidade na própria ficção. Cada escritor parte inevitavelmente de uma determinada geografia humana, que o destino lhe guardou na caminhada da sua vida. Do mesmo modo, cada leitor aproxima-se de um texto a partir da sua própria vida, experiência e imaginação, se não reescrevendo o livro de outrem, pelo menos “completando-o”, assimilando ou resistindo à leitura do texto, às aparentes propostas interpretativas do próprio autor. Do que poderia e gostaria de citar aqui, guardo, entre muitos outros, o momento “açoriano” com que a autora nos brinda. Depois de nos contar a velha amizade entre a família de Nemésio e a sua, Teolinda relembra uma viagem à Ilha Terceira, e num dado momento em busca da casa de nascença do autor do Jornal do Observador, que ela menciona directamente. Duvido que a ficção comportasse credivelmente o que lhe acontece numa rua da Praia da Vitória, e quando pergunta ao primeiro homem que encontra onde ficava a casa de Nemésio: “A casa de Nemésio? Venha comigo, disse. Eu moro lá”.
As Águas Livres é quase todo feito destas pessoas e situações inesperadas, mas que nos aproximam ainda mais do próprio texto. Não é
só a autora que está em frente a um espelho de imagens ora “realistas” ora “distorcidas”. Estamos lá com ela, na nossa comum humanidade.
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Teolinda Gersão, As Águas Livres/Cadernos II, Porto, Sextante Editora, 2013.
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