Honra Nacional por John Wolf

A análise de uma sociedade constitui uma tarefa obrigatória e condição necessária para a procura de um sentido de progresso. Poderá significar a imposição, sobre a proclamada inteligência ou círculos iluminados, de um sentido autocrítico severo e não necessariamente desejado. Contudo será preferível tentar lidar com o âmago da questão de forma frontal e directa. Qualquer tentativa para mitigar ou alterar o quadro de percepções da realidade não representa um contributo para o progresso e avanço colectivo. As sociedades crescem com o pêndulo que oscila entre o idealismo e o realismo, o possível e o efectivo. Os comportamentos que se possam analisar integram a realidade de forma premente e resultam de vectores que se enraízam numa profunda matriz de princípios. A construção nacional ou individual será, neste sentido, também um desafio moral.

Poderemos concordar que a honra e a hipocrisia representam na sociedade energias que integram quadros mentais opostos ou contraditórios, e que determinam as atitudes tomadas pelo homem no seio de uma sociedade. A honra será sempre um conceito difícil de definir e paradoxalmente indefensável, mas intensamente condicionante do ambiente social. A hipocrisia, encontramo-la no campo oposto da honra, pelo seu efeito degenerativo. Ambos os atributos integram a matéria definidora da personalidade do indivíduo, e manifestam-se através da interacção social, através de princípios e comportamentos que afectam em última instância o equilíbrio e o progresso de uma sociedade. A honra corresponderá a um critério exclusivo e privado, na medida em que cada indivíduo estabelece os limites morais ou éticos para o seu comportamento, além do comportamento colectivo, da lei, religião ou qualquer outro quadro de valores. A honra encontra-se sempre para lá da lei, pela acção auto-coerciva que se estabelece na alma humana imposta pela consciência de cada indivíduo. No entanto, e talvez contraditoriamente, a própria consciência poderá ser anti-ética, negativa ou amoral. A honra reúne assim elementos de autonomia, auto-estima e juízo independente. Relacionar-se-á com um sentido de auto-estima, através do qual o indivíduo configura o seu próprio sistema de realização e recompensa.

A honra poderá também ser entendida enquanto um regime solitário, porque cada indivíduo reclama para si a sua própria definição. Representará a condição híbrida que combina elementos racionais e emocionais, e que desperta no indivíduo a tomada de consciência do modo como poderá ser percepcionado pelos outros.

A condição extrema da ‘defesa da honra’ revela-se no contexto colectivo ou na matriz social, porque implica sempre a relação do indivíduo com outros membros da sociedade. Numa acepção ‘social’, a honra poderá representar o critério-chave para determinar a qualidade de membro (de pleno direito) de uma sociedade. A honra representará também o último reduto intocável da personalidade e individualidade, que não poderá ser posta em causa pela acção dos outros. Poderemos também entender a honra enquanto uma linguagem simbólica que estabelece limites comportamentais no quadro da interacção social. A importância do seu sentido na sociedade relaciona-se com a forma como cada indivíduo se presta à preservação dos princípios que a sustentam. Os princípios a que nos referimos encerram em si o seu propósito, a sua própria razão existencial, procurando garantir a continuidade da coesão social.

A edificação de uma sociedade justa e equitativa, uma das missões propostas pela democracia, reconduz-nos à ideia de honra e dignidade humana. Se uma sociedade inverte a hierarquia de valores e coloca ao serviço de interesses específicos ou parciais os princípios que sustentam a honra, estará a desvirtuar o ideal de crescimento colectivo, colocando em cena a hipocrisia. A honra remete também para a ideia de aceitação e cumprimento das regras estabelecidas pelas instituições e processos democráticos, que elege as prioridades do desígnio nacional e que se pode fazer equivaler às aspirações individuais. A sua importância transcende a figura poética ou romântica, para oferecer valor no plano colectivo. A honra a que nos referimos corresponde à integração no espírito humano de um profundo sentido de responsabilidade, respeito e até mesmo de amor-próprio. Por outras palavras, traduzir-se-á numa sociedade que congrega indivíduos com capacidade para auto-regular os princípios que são comuns à dignidade humana. Esse acto de auto-regulação configura uma atitude de generosidade, uma vez que por vezes ‘o justo paga pelos pecadores’.

Por mais que queiramos negar tal facto, a dimensão moralista tem lugar cativo na história da sociedade humana. A obrigação moral de cada um tem-se revelado ao longo da história da humanidade no cumprimento dos direitos e deveres colectivamente determinados. Fingir o cumprimento dos deveres serve para promover a desagregação da coesão social, tendo um efeito corrosivo no desenvolvimento dos indivíduos, da sociedade e, em última instância, do próprio país. Os comportamentos não pautados pela honra ou dignidade humanas, acaba por minar a forma como a sociedade é percepcionada pelos seus próprios membros e por outras sociedades no seu todo. As péssimas e negativas excepções comportamentais, devido à sua intensidade e visibilidade mediática afectam a reputação daqueles que se têm mantido fiéis a princípios edificantes. Os ‘guardiães da honra’, ou seja, os que não manifestam um comportamento desviante, são obrigados a intensificar a defesa de princípios e valores para compensar a generalizada aceitação passiva de comportamentos marginais. Se imaginarmos um rácio entre os que observam os princípios positivos e os que desenvolvem práticas marginais, poderemos medir quantitativa e qualitativamente o grau de compensação necessário para repor um estado de equilíbrio numa dada sociedade. As práticas ou comportamentos desviantes observados minam o grau de confiança que se tem em relação a determinada sociedade, pelo que os elementos de coesão das comunidades começam a demonstrar vestígios de desafectação face ao mau comportamento dos ‘poderes instalados’.

A lista incompleta de comportamentos que desonram uma sociedade, inclui o incumprimento das obrigações fiscais, o desrespeito pelo código de estrada, a apropriação de espaços públicos para benefício próprio, a associação a teias de favores e interesses, a não integração de minorias (nacionais, estrangeiras, sociais ou étnicas) no núcleo das comunidades, a exclusão de indivíduos em função da filiação política ou partidária; o estacionamento em segunda fila a bloquear quem está legalmente estacionado, assim como a ocupação de lugares de estacionamento para deficientes; a atribuição de dinheiros públicos a amigos sem que haja observação dos preceitos legais (concursos públicos); o desvirtuar dos ecopontos; o não cumprimento de prazos e horários; a procura de ‘jeitinhos’ nas repartições públicas; a concessão de ‘atenções’; a procura de ‘cunhas’ no mercado de trabalho (em vez de prosseguir a escalada profissional baseada no mérito); o plágio intelectual, que não se limita à obra criada, mas que se manifesta na apropriação de ideias ou soluções apresentadas por colegas em empresas ou estruturas profissionais. 

Provavelmente esta lista pecará pela omissão de um sem número de situações representativas da devastação de valores nas nossas sociedades. Caberá a cada indivíduo proceder à observação atenta do fenómeno social e analisar o seu próprio comportamento de forma a construir a sua lista de eventos que considera atentarem contra o colectivo ou a sua própria integridade. A democracia nunca pretendeu significar a expressão de liberdade à custa de outrem. A atitude consubstanciada na expressão ‘salve-se quem puder’ não pode fazer parte de um país que assumiu historicamente a responsabilidade por um colectivo humano (ultramarino), transcendendo para tal os seus próprios limites geográficos e nacionais. Os comportamentos desviantes e generalizados, que se assumem como tal porque são aceites enquanto prática comum do colectivo, não podem merecer aprovação se representam distorções e violações dos princípios basilares de uma sociedade. A expressão anónima de uma sociedade não pode servir para dissimular ou camuflar as prevaricações individuais. A forma como um país é percepcionado resulta da agregação de comportamentos individuais, sendo que o ‘homem honrado’ poderá ser reduzido a um estereótipo injusto por força da maioria mal comportada. Será por esta e outras razões que o não acatar de responsabilidades e comportamentos correctos representa a traição do conceito de honra individual.

O tráfico de influências nunca representará o grande contributo positivo que um país pode merecer. Esta forma de indisciplina colectiva reflecte-se nas oportunidades que não serão concedidas internamente mas também externamente, condicionando a dádiva de elementos de desenvolvimento em função da objectividade negativa que retrata um país. Esta condição relaciona-se com o conceito de investimento directo estrangeiro, e revela-se no ranking que estabelece destinos de investimento mais ou menos desejados. Se um país revela a sua fragilidade através de práticas marginais e pela atitude individual de cada cidadão, os potenciais investidores afastar-se-ão e procurarão ambientes sócio-económicos mais favoráveis. As pequenas transgressões perpetradas pelo número não-clausus de uma sociedade, representa perdas não mitigadas pelo passar do tempo. Readmitimos aqui a expressão já utilizada noutra secção da dissertação ‘pobre mas honrado’ para reconhecer a virtude que representa, por oposição ao pretensiosismo material que assola um país à beira da falência de virtudes. Caberá a cada um assumir a sua quota de responsabilidade na gestão da ‘honra nacional’, procurando contrabalançar os comportamentos marginais, através da assunção do contrato individual da própria consciência. Cada qual responde por si. É uma questão de honra. Nacional.

in Portugal Traduzido, Edições Cosmos, 2008

 

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