Hoje quero escrever uma coisa assim, de fios. Dos fios detectados, dos que nos sustentam. Fantoches somos na mão invisível de alguém que nos manipula? Ou, simplesmente, falar dos múltiplos fios em que estamos todos enrolados, na imensa rede que não foi inventada pela indústria da comunicação virtual, como se poderia pensar numa simplificação – mas na enorme rede da vida. Pior: do cosmo. E que nós, pobres fiozinhos atormentados e complicados no nosso emaranhamento, temos a pretensão de querer entender, desenrolar. Enfim – ridículas formiguinhas.
Anos atrás inventei a pretensão de contar minha vida, para entendê-la um pouco. Se fracassei quanto ao livro pronto, amontoei quilômetros de entulho literário feito de coisas e loisas, e amores e desamores, e desesperos e retemperos, material que está todo por aí, pelas gavetas dos móveis, do micro, do Ser – um dia será amarrado em pacote, espero, e definitivamente selado e entregue.
Enquanto isso, indago consistente: que fio afinal usarei para amarrar esse pacote de mim? Que fios usarei para bordar a eterna tapeçaria que nós mulheres tecemos (desde aquela nossa protoavó Penélope) para deixar em legado à família ? – para que em mim não se cumpra o destino das mulheres silenciadas, tias-avós de diários bolorentos jogados fora pelo primeiro sobrinho aparecido após o enterro, versos escritos com aplicada letra de curso primário, indefectíveis rosas secas dentro de um livro esmaecido, e os murmúrios, e os lamentos que ressoam em todos os haréns, em todas as salas de todas as famílias.
Ou simplesmente morrerei de boca costurada, como foi durante tanto tempo o destino das mães e avós loucas?
Mas não é fácil contar esta história um tanto estranha, feita de tantos pedaços, te confesso. Não é fácil costurar seus elementos – que linha usarei, pois?
A linha da mediocridade, comprada na feira, parda e resistente, que minha avó italiana usava para cerzir eternamente, num ovo de madeira, as meias da família? Minha avó que nunca falava, que morreu silenciosamente aos 97 anos, doce e apagada velhinha de cabelos de algodão e olhos azuis.
A linha triste e discreta com que me costuravam os botões do uniforme azul-marinho do externato de freiras? Ou talvez eu deva escolher, por que não? algum dos fios mais brilhantes que me foram concedidos pela vida, tons rosa-salmão do meu primeiro vestido de baile? Ou o fio de cetim imaculado do vestido de noiva? Ricas nuanças de tapeçarias medievais? (não fui por acaso castelã e prisioneira?) Ou espargir pelo meu livro as cores, nunca reveladas, daquela imensa, interminável, milenar tapeçaria que nossa protoavó Penélope desdobrou sobre toda a humanidade?
– e cujo risco ninguém, nunca, se preocupou em saber qual era…
Não. Já sei. Usarei, para tão digno bordado, aquele fio de seda mista que as freiras já no primeiro ano primário queriam nos obrigar a usar, com paciência nos adequando para as exigências da vida: enfiar, e enfiar de novo, e mais uma vez, e sempre, uma linha enfezada e resistente na agulha fina de buraco que se esquivava manhoso em um trabalho de amostras de pontos de bordado, um paninho de linho branco que se queria – como tudo para nós – puro, imaculado. E que só eu, a menina má, amarfanhava num canto da pasta, retirando-o de má vontade, medrosa, na hora de trabalhos manuais. E minha linha, só a minha, parecia se obstinar em criar nós e complicações.
(Como estas urdidas – ardidas? – memórias de hoje.)
Irmã Louise, vermelhona, de pelos no rosto, me dizendo, vidente, talvez: “Mas isto não é um mostruário. É um monstruário.” Teria ela realmente seus dons? Veria já no paninho encardido, sujo de tinta, vergonhoso, de linhas emaranhadas, alguns dos lagartos, das serpentes, das complicações existenciais em que eu me veria mais tarde colhida?
Segredo: ah, no meio do pano encardido bordei uma tosca florzinha inventada, com linhas gloriosamente espalhafatosas, azul-real, verde-pavão, vermelho-sangue. Depois disse para a freira que tinha perdido meu pano de amostras – que me dessem outro, talvez tenham me dado, nem me lembro o que aconteceu com ele. Mas a aprendiz de bordadeira seguiu e segue vida afora emaranhada na teimosia de tantos nós, tantas linhas enfezadas alinhavando pontos impossíveis – tentando lembrar qual era aquela flor inventada com todos os tons brilhantes da esperança, um dia.
Cecília Prada