Deste lado do mar vermelho, de Sónia Cravo

Custódio refugia-se no seu escritório, sempre fechado à chave. É o único local da casa onde Lia, a sua mulher, o deixa fumar. Um espaço interdito a Lia, que resiste a todas as proibições, um estranho e exíguo espaço de liberdade, sempre trancado. Todas as manhãs, a empregada leva-lhe o pequeno-almoço, leite, café e bolachas com manteiga. Isaura serve naquela casa há muitos anos, é uma mulher discreta. Um dia não coloca a chávena no tabuleiro, a sua suspeita confirma-se.

Custódio escreve poesia em cadernos quadriculados. É um homem que entrega os seus momentos de evasão a espaços exíguos, ao quadriculado do papel, à pequenez daquele escritório. Digere aí a sua perda e a sua dor.

 

Longe dali, um grupo de miúdos vive sequestrado numa barraca perdida no bosque. Anselmo, o seu tio guardião, protege-os dos monstros e dos egípcios De vez em quando, são visitados pela fada do mel. O bem e o mal são conceitos da mesma natureza, nascem do medo que se alimenta da ignorância. Um dia, o mais velho desses miúdos decide ir ver o mar, já não teme os monstros; o voo de um pássaro é agora para ele, apenas isso mesmo; não tem nada a temer.

Na terra do Além-Cá não existem egípcios. Este é um livro sobre o medo. O medo da loucura, da normalidade, do segredo, o medo do medo. Neste livro existe um cão que se chama Pide e que é espancado. Este livro não é sobre o medo, é sobre a possibilidade de renascermos.
Custódio escreve, num impulso (um formigueiro que bem conhece), uma poesia sobre folhas quadriculadas e desabafa:

Mas não, não me peçam que suporte
O peso de uma cidade inteira sobre mim.

Os espaços exíguos parecem aproximar estes personagens, como se só, uma vez juntos se libertassem. Acreditamos que a saída é uma luz ao fundo do túnel, que a felicidade se afasta de nós como uma margem no extremo oposto de um oceano. Estes personagens descobrem ser deste lado de cá do mar vermelho, no lado de cá dos seus medos, que se encontra a saída. Juntos trilham esse caminho. Não mais deixarão de ser uma família.

A escrita da Sónia Cravo atinge, neste seu segundo livro, uma vincada maturidade. “Há barreiras de metal a separar o alcatrão do manto verde.” O leitor percebe logo que o carro segue numa auto-estrada. Ou, “A estrada começa a enroscar-se nas árvores.”, para descrever um caminho secundário. A economia semântica, sempre tão difícil de atingir.

Num ritmo forte e seguro, sem dissonâncias, esta é uma escrita que não desafina, que cria momentos de grande beleza através de imagens muito bem conseguidas. Em momento algum, sentimos que autora divaga em busca do ritmo da história ou de uma saída. Esteve sempre no foco da sua escrita.

Neste lado do mar vermelho apenas conhecíamos um rio. Eram verdes as suas margens. Assim o recordam aqueles miúdos.

Editorial Estampa – 2013
António Ganhão

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António Ganhão
Tags: Sónia Cravo

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