«Por que razão só despertamos quando o Destino nos põe de castigo? Nem sequer se trata da contrição de pecados, mas da gravidade de termos cometido pecados que não eram os nossos. Gastamos tempo da nossa vida em horas e lugares que não nos pertencem; entregando-nos a causas que não nos estavam destinadas – com sorte, desembocamos na nossa própria vida; experimentando a vergonha de termos andado a usar a de outro. Só nos resta afastá-la com estranheza e embaraço, pedindo desculpas desajeitadas, por uso indevido, e perdão aos que deixámos para trás. É aí que procuramos pelo chão, pelo pó da estrada, a evidência, o lugar que nos mostrará o engano no caminho, a fim de podermos oferecer de novo o braço à nossa realidade legítima. A prova viva de que Deus, a existir, terá que ser um incorrigível brincalhão, é a sua maior ironia: quando somámos a sabedoria bastante para apreciar o Sol com certa dignidade, o nosso dia já anoiteceu.»
(in “O PISA-PAPÉIS”, novela, DG Edições, 2006)
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