Acordo com o pulsar da raça humana. Saem nas embarcações metálicas, e navegam-me nas artérias, que estremecem à sua passagem. Deixam-se transportar, velozes ou sonolentos, por músculos e tecidos, até ao meu coração. Sou ser vivo, animado pelo despertar dos que por mim escorregam, impacientes. Arrumam-se e encolhem-se, tornando-me em árvore gigantesca que alberga, nas suas ramagens, os frutos por amadurecer.
O dia enlourece, a corrente sanguínea acelera. Cada gota encontra o seu lugar, conquistado como um difícil jogo de cadeiras. Vasculham-me o corpo, esmiuçando-me encruzilhadas e recantos, em movimentos vulgarizados e domesticados de velhos amantes. Mudam-me os contornos, em intervenções cirúrgicas que me desfiguram, humanizando-me, ao ponto de ser a minha presença imponente, irrespirável, ingovernável. Assim me consideram verdadeira, digna da minha condição: quando o esboço do meu corpo se traduz numa teia multiplicada de vias, que levam qualquer um a qualquer lugar.
Em mim cultivam as artes e as árvores, para que também eu respire, num jogo de dá-e-tira típico das metrópoles.
O sol amorna-se: eles preguiçam ou apressam os gestos, desperdiçando o entardecer. Forjam-se documentos; erguem-se pontes e edifícios; trocam-se produtos e capitais; enterram-se gotas exangues; trazem-se, à luz dourada, novas gotas de sangue fresco e promissor.
Também eu me espreguiço, exausta de me sentir espezinhada e apalpada, ensaiando a retirada sem causar danos: assim me despeço de muitos, mandando-os para casa nas minhas veias de alcatrão, enquanto fico na companhia dos que agora chegam, de olhos nocturnos, desencontrados com a luz.
Acendem-me néons, cores brilhantes e nervosas, que me deixam dormente e insone. Não é, porém, uma sensação que me desagrade. Aproveito para espreitar a vida dentro das casas, onde eles fingem repousar.
Em horas de vigília vêm cobrir-me, por vezes, com um manto de neblina. Ali fico, quieta, olhando os cambiantes do céu, que se vai vestindo de azul.
Ninguém me pergunta se quero aqui ficar.
Por minha vontade fugiria para o campo, mas dizem que, se tal sucedesse, seria como ciclone que tudo devora no caminho: a paisagem desmoronar-se-ia, pois também uma tela verdejante se pode demolir num segundo. É pena. Gostaria, ao menos, de lhe fazer uma visita, se estas raízes invasoras não deixassem sulcos tão profundos no solo, e na memória dos que me alimentam.
A Terra, essa, sacode-me por vezes as costas, como que a queixar-se do excesso de bagagem. Tento explicar-lhe que não sou eu, são os homens que brincam aos castelos de areia em cima de mim.
(Vera de Vilhena, revista Egoísta, 2006, tema «Cidade II»)