Do fundo das trincheiras erguemos o olhar quando escutamos palmas. São elas que nos devolvem a consciência de estarmos em cena, de que toda a nossa vida não passou de uma representação, uma peça gasta e encenada tantas vezes que se esgotou na solidão de já não termos mais ninguém a assistir.
O teatro enche a nossa vida de todas as falas, até que a própria vida se transforma nisso: palavras ditas que não nos pertencem, que são as que os outros esperam ouvir. Transformamo-nos então “naquilo que os outros veem”. Os segredos que escondemos estão protegidos. Rodrigo partiu para a guerra, a Grande Guerra, para fugir de um amor que lhe podia ser motivo de escândalo. Nas trincheiras de França tinha o céu como único horizonte e foi a partir daí que escreveu as cartas ao amor da sua vida, aquele que abandonou sem se despedir.
Dois homens com uma guerra a separá-los. Um deles entrega-se a essa devastação, à “compulsão dos soldados em se proteger”, ao pânico colectivo e à demência dos sentimentos. Foge de uma vida onde ajusta o seu “comportamento aos critérios da falsidade”; consciente de perturbar o modo de vida burguês em que cresceu, rodeado de verdades decrépitas. Deseja afastar-se das “inclinações doentias” de que se julga vítima. Essa única forma de “descer a abismos de prazer físico”. A felicidade era um lugar que lhe estava vedado e sente-se um tigre enjaulado, tendo toda a sociedade como guarda. Na frente da batalha “não queria propriamente morrer, era antes como se ansiasse por uma cura”. Mas na frente, “nenhum ato heroico é intencional”.
Luís Henrique encontra-se com Violante depois de ter partido, há mais de vinte anos, sem se ter despedido. Fugiu a um escândalo que uma sociedade conservadora não lhe perdoaria. Aguarda pacientemente a deixa com que Violante lhe permitirá falar. Deseja ver esclarecido um segredo, um segredo que o atormentou ao longo de todos estes anos e o fez partir. Espera, como um soldado numa trincheira espreitando a eminente investida do inimigo. Se é um ajuste de contas o que procura, isso está nas mãos de Violante. Contracenam mais uma vez; sempre assim foi nas suas vidas, a verdade sobre o palco. Violante não sacia a curiosidade do seu ex-marido, antes, passa-lhe um testemunho. Luís Henrique encontrará a resposta à sua dúvida na forma como se revê nesse testemunho. Afinal, a grande diferença entre a vida e o palco, reside nesse guião que se segue, com empenho e entrega total. O final acontece, sempre que o pano cai. Precisamos então de um púbico para saber que estivemos em cena. Palmas no final.
Têm sempre de existir palmas no final.
Rodrigo viveu uma vida de renúncia constante, reprimindo os seus desejos. Também Luís Henrique esvaziou a sua vida de amor. Num hospital de França, moribundo, Rodrigo, nos seus escassos momentos de lucidez, descobre que a única “inclinação doentia” de que padeceu foi o vazio abrupto de uma vida sem amor a que se condenou. Encontrará Luís Henrique, no exemplo de Rodrigo, a resposta que procura? Talvez.
“Na guerra das trincheiras todas as mortes são a mesma morte.”
A escrita de Ana Cristina Silva, cola-se a aos personagens, lê-lhes os pensamentos, as suas angustias e as suas inclinações. Desce até ao mais recôndito recanto do ser dando-lhe voz. Uma voz que engrandece a alma e resgata a natureza humana de todos os preconceitos arcaicos em que persistimos viver. Fá-lo num registo de elevação e de sóbrio contorno poético. O ser humano e as suas fragilidades, mas sobretudo a sua nobreza, são o banquete principal. Insaciáveis, ficamos viciados desta leitura.
A Segunda Morte de Anna Karénina, de Ana Cristina Silva – Oficina do Livro – 2013
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