O Valado da Conceição orgulhava-se de ser ali que o Natal começava mais cedo – na festa da padroeira, a 8 de Dezembro, com a representação de um presépio vivo, que se repetia a 25, no Ano Novo e no Dia de Reis. A aldeia já tivera uma equipa de futebol e uma banda de música, mas agora mal conseguia figurantes para a encenação. Nem sequer ovelhas, que, antes, eram trazidas para as colinas ao redor do Valado, sendo de lá que vinham pastores verdadeiros adorar o Menino. E, neste ano da graça de 2012, pela primeira vez não havia uma criança em idade de fazer de Jesus. O Menino seria substituído por um boneco, mas o boi e o burro, ao contrário do habitual, não sairiam do estábulo do Pedro “São Pedro”, onde passavam a maior parte do Inverno, a uns cinquenta metros da igreja, porque constava que o Papa os retirara do presépio.

Mas Maria da Luz, o anjo do Valado, era a ausência mais sentida. Bela como se tivesse saído de um quadro de Murillo, e pura como uma Imaculada, havia cinco anos que representava o papel de Maria. Uns meses antes, porém, causara surpresa e desgosto em toda a gente. Ficara grávida, não se sabia de quem, e fugira da aldeia antes de haver sinais aparentes da sua queda em tentação. E, muito pior, dizia-se que fora para longe não pela vergonha de ser mãe solteira, que era do que mais se via por este mundo de Deus, mas por não querer que o filho nascesse. Apesar disso, a festa foi preparada com o que restou de entusiasmo.

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O povo do Valado da Conceição ao menos não teria sofrido o desconcerto da prevista ausência do boi e do burro se soubesse o que muitos jornalistas pareceram ignorar – que a palavra presépio, antes de ser o nome dado à representação do Natal, significava apenas estábulo. Bento XVI não fizera mais do que lembrar que Lucas não alude a animais na presença do Senhor, e que a tradição de serem postos aqueles dois a velar o menino resulta de uma interpretação do que disse Isaías: “O boi conhece o seu dono e o burro o estábulo do seu senhor, mas Israel não me conhece e o meu povo não compreende.” E disse ainda que “nenhuma representação da natividade renunciará ao boi e ao burro”.

Se um presépio fosse uma lição de história, não poderiam constar nele nem igrejas, nem bandas no coreto, nem ranchos folclóricos, nem mulheres pastoras, nem o mais que é costume haver e não havia…

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Não foi só a saudade que fez Maria da Luz voltar à aldeia no primeiro dia do presépio, mas também o desejo de que o povo visse como o seu menino estava vivo, lindo e saudável. Chegou envergonhada e temerosa, mas ninguém a censurou. O filho foi mesmo recebido triunfalmente, e não lhe pareceu que o entusiasmo fosse apenas por ele poder servir de Menino Jesus. E se a criança chorasse muito por não ver a mãe ao pé de si?… Pois então faria ela mesma de Maria, se a Fátima, escolhida para o papel, e o padre João o permitissem. A Fátima seria mais fácil de convencer, com certeza…

Afinal, nem ela nem o padre resistiram à ideia. Porque “todos são filhos de Deus”, disse ele. Só faltavam a vaca e o burro, mas o padre João, velho, e cada vez mais surdo e teimoso, embora nunca teimasse com má intenção, não se deixara demover. Era preciso respeitar o papa, dizia, sem que ninguém tivesse podido ou sabido convencê-lo de que não havia mal nenhum em seguir a tradição, que o pontífice não negara sequer. E muitos tinham crescido ouvindo a história de que o burro que trouxera a Virgem estivera no presépio de Belém, e que um boi aquecera o Menino bafejando sobre o seu corpinho mal agasalhado.

O início da encenação era anunciado com o canto do “Adeste Fideles”. Então, atraídos por aqueles sons a que estavam habituados, o burro e o boi do Pedro “São Pedro” deixaram o estábulo, que o dono se esquecera de fechar, e foram calmamente cumprir o seu papel, pondo-se de um lado e outro da manjedoira.

Daniel de Sá

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