“Em meados do século XVI o rei D. João III oferece a seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, genro do imperador Carlos V, um elefante indiano que há dois anos se encontra em Belém, vindo da Índia.” Desta forma se resume o episódio histórico a partir do qual Saramago construiu o seu romance. Salomão, assim se chama o elefante, parte a caminho de Viena acompanhado do seu cornaca. Uma comitiva de apoio assegura a necessária logística e todos seguem protegidos por uma escolta militar. Homens e bestas caminhando segundo a sua condição.

 

Cabe às bestas impor o ritmo. Salomão, depois de comer, precisa de dormir e os bois, que puxam a dorna de água, sendo os mais lentos, ditam a velocidade a que se progride. De todos, Salomão é o único sem ocupação. Chegado da Índia, após dissipada a curiosidade popular, ficara esquecido em Belém. De pouca utilidade, por não existir em terras lusas trabalho para ele, é resgatado da sua condição de desempregado ao ser enviado para Viena. Os bois puxam as carroças, os cavalos servem de montada aos militares, os homens asseguram as tarefas diárias e os militares vigiam. Nesta missão, cabe a Salomão o papel de embaixador. Atestará junto da corte do imperador Carlos V o prestígio do reino de Portugal. De entre homens e animais será o único, que apenas caminhando, se elevará acima da sua condição de besta.

Por onde passa, as pessoas acorrem a vê-lo. Esta extraordinária criatura deixa os homens, na sua ignorância, sem palavras. Os que são de fé sentem a necessidade de resgatar a besta das terras infiéis onde foi gerada e convertê-la, mesmo sabendo-a sem alma. Tarefa inútil, pois como afiança o cornaca, para um elefante indiano, em qualquer sítio onde se encontre será sempre a Índia. Expressando estas coisas simples de quem, por muita vivência, as foi adquirindo ao longo da vida, surge o cornaca aos olhos dos que o acompanham como um homem sábio. Dominar as bestas sempre foi um saber muito apreciado em todos os tempos e por todas as paragens.

Tal como nos recorda Pilar del Río no prefácio, Saramago comentava terem sido os leitores que o impeliram a contar as peripécias de um alter-ego majestoso chamado Salomão, conduzindo até à suposta imagem do paraíso que era Viena, embora aí tenha encontrado o esquecimento e a morte, como demasiadas vezes acontece connosco, seres humanos que nos debatemos entre promessas e anseios. Muito rica foi a viagem do elefante.

João Amaral recriou este romance em banda desenhada, onde não falta o narrador Saramago caminhando na paisagem vulcânica de Lanzarote, aparecendo em momentos cruciais para, num murmúrio de apaziguamento, tranquilizar-nos por se tocarem emassuntos tão retorcidos debaixo da cúpula celeste. Ou ainda, como um dos lanceiros da escolta militar, para de seguida se esfumar deixando a narração entregue ao seu próprio curso. O autor vence também o desafio, para a economia das imagens, que constituem os debates que opõe o cornaca Subhro ao comandante da escolta militar. João Amaral deu à cor um papel essencial que nos ajuda a situar geograficamente a ação ou a perceber em que momento nos encontramos. Os desenhos primam pela simplicidade, pelo rigor do traço e na construção das páginas, sempre de fácil leitura, usa o espaço como forma de imprimir o ritmo à ação, opor os personagens entre si ou isolá-los contra a paisagem num momento de intimidade. Tal como diria Subhro em sua defesa: tudo isto são palavras e só palavras, fora das palavras não há nada.

Publicado em Acrítico, leituras dispersas.

António Ganhão

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